Quem tem o privilégio de reivindicar a singularidade?

Crítica do espetáculo Protocolo Elefante

Por Deise de Brito

Protocolo Elefante

Sensações. Somos atravessadxs por elas quando apreciamos uma obra artística. São as sensações que nos fazem “ser” o espetáculo no momento em que ele é apresentado. As relações dos nossos sentidos com a obra dizem que tipo de laço criamos com o trabalho. Esse pode ser um “laço-acolhimento” ou “laço-recusa”.

Assistindo Protocolo Elefante, do grupo catarinense Cena 11, fui, naturalmente, tomada por sensações que ora me aproximavam da coreografia, ora me afastavam. Em curtos momentos cochilei. Mas, isso não foi um “laço-recusa”. Pelo contrário, a atmosfera sonora em conjunto com ritos individuais e coletivos que o grupo propõe em momentos do espetáculo, impeliu-me a uma visita a mim mesma. Conformando com as palavras do diretor Alejandro Ahmed, que, durante o Pensamento em Processo, disse a frase “Ser um visitante de si mesmo”, para ilustrar um dos significados do trabalho para o grupo.

O trabalho “propõe uma metáfora de separação e exílio a partir da ação de afastamento e de isolamento do elefante na iminência de sua morte.” (retirado do catálogo da 6º edição MITsp). Usando a metáfora de afastamento do elefante, durante o processo de construção da obra, cada integrante revisitou as suas relações com o grupo, gerando reflexões acerca das ideias de memória, vestígio, singularidade, identidade e coletivo. Como pensar na singularidade e no coletivo ao mesmo tempo, foi uma das questões levantadas no processo criativo, segundo Ahmed.

Remodelando-se ao Teatro Sesi-SP, xs intérpretes ocupam palco e plateia, disformando seus corpos. Coreografando sons no silêncio com Hedra Rockenbach, que assina a direção de trilha, iluminação e performance, xs dançarinxs lançam-se no espaço em giros, quedas, inclinações, torções e outros vocabulários de movimento comuns que são encontrados na dança ou danças contemporâneas. Cada intérprete tem um bastão de ferro com o qual interage. Todos os bastões são iguais, estabelecendo-se como uma das unidades daquele coletivo.

Protocolo Elefante

Sensações II. Nos momentos finais do espetáculo, por conta dos efeitos de iluminação, a plateia é atravessada pelo que eu chamo de uma mistura de imensidão e segredo. A iluminação materialmente perpassa o público. Ao final, xs intérpretes saem do palco e não retornam para os agradecimentos. Continuemos com nossas sensações.

Durante o diálogo pós espetáculo, um jovem negro que estava na plateia, apresenta a sua sensação de não atravessamento, usando o texto da sinopse, para expor o seu laço com a obra. Não conseguirei escrever a questão daquele jovem de forma literal. Mas, recordo-me de ele relatar a ausência de pessoas negras no Cena 11, o que dificultava o cruzamento do trabalho com o seu corpo. Alejandro Ahmed responde abordando a respeito da “potência do vazio”, tentando argumentar a diferença entre ausência e apagamento. Antes, ele colocou que não existiam elefantes só na África, que eles eram encontrados na Tailândia, também. Essa resposta, com fios educados numa sociedade racista, vem num tom cordial para justificar as ausências de pessoas negras no espetáculo Protocolo Elefante.

Sensações III. A pergunta do rapaz e a resposta do diretor deslocam as minhas sensações para outro lugar. O meu território de artista negra. Pergunto-me: Como nós, pessoas negras, podemos exercer a nossa singularidade, se, antes, precisamos reivindicar nossa humanidade? Não temos o privilégio do exercício mínimo da nossa singularidade. Há outras urgências. Como muitxs outrxs, Alejandro Ahmed não quer olhar pra isso. A resposta dele evidenciou tal fato.

Sensações IV. Agradeço a questão do jovem porque as minhas sensações foram revisitadas. Afastei-me delas para retornar. Xs 11 integrantes brancxs em cena no espetáculo Protocolo Elefante podem abordar as suas singularidades. Podem se perguntar a respeito do que é pertencer ou da necessidade de pertencimento, inclusive questionar suas identidades, porque, no Brasil, os brancos não se racializam. Assim, eles têm o privilégio de tratar qualquer pergunta no palco, principalmente, quando possuem boas condições de produção para tal. E quando nós, populações não brancas e não normativas, reivindicamos respeito, somos pejorativamente chamadxs de “vitimistas”. Do “laço-acolhimento” fui empurrada para o “laço-recusa”. Eu recuso Protocolo Elefante.