Um manifesto urgente e necessário
Crítica do espetáculo Manifesto Transpofágico
Por Ana Bernstein
Manifesto Transpofágico, espetáculo solo da dramaturga, atriz, e diretora travesti Renata Carvalho, que estreia na MITsp, confronta-nos com questões cruciais e urgentes sobre a construção social do gênero e, em especial, dos gêneros dissidentes, em uma sociedade cisheteronormativa, na qual o menor desvio da norma é punido com violência (física, emocional, linguística).
O corpo nu da artista protagoniza uma narrativa que é parte autobiográfica, parte antropologia e parte história da corporeidade trans, um discurso ao mesmo tempo pessoal e político, no qual ela se coloca, em suas próprias palavras, como “um experimento, uma vitrine, uma cobaia”. Com o rosto no escuro e o resto do corpo iluminado, apenas de calcinha, Renata nos fala de um corpo que “sempre chega antes, na frente”, independente do sujeito, um corpo que são muitos, em constante processo de sujeição e resistência, de escrutínio, de afirmação, de vida e de morte: corpo bebê/menino/azul – corpo que a precede -; corpo disciplinado, para aprender a “ser homem”; corpo adolescente; corpo problema; corpo cela; corpo gay, marginalizado; corpo travesti – hormonizado, bombado -; corpo pornô; corpo patologizado; corpo objeto e corpo abjeto; corpo vergonha; corpo matável.
A história pessoal de Renata é política porque é a de tantas outras travestis rejeitadas pela família, expulsas de casa, obrigadas por vezes a se prostituir, sujeitas à precariedade e à violência, destinadas à morte social. Não surpreende, portanto, quando a ouvimos dizer: “Eu morri”. Mas essa morte opera também um renascimento, a possibilidade de parir um novo corpo, corajosamente construído por ela. “Mudar de corpo é como mudar de casa”, ela diz, com ecos de Lygia Clark, que em 1968 criou a instalação O corpo é a casa. A construção do corpo travesti é examinada tanto do ponto de vista do desejo, da autoestima, quanto dos arriscados tratamentos com materiais industriais, mais populares devido ao alto custo de implantes de próteses.
A travaturgia de Manifesto Transpofágico, a exemplo dos modernistas, devora, digere, assimila e regurgita artisticamente aquilo que foi deixado de fora da história, que Renata apropriadamente nomeia de “transcestralidade”: O Manifesto não só recupera exemplos de travestis famosas como Rogéria, Jane di Castro e Roberta Close, eleita a mulher mais bonita do Brasil, como também denuncia a criminalização, a sexualização e a perseguição institucionalizada às trans. Numa interessante composição visual em que sua imagem, enquadrada como em uma vitrine de sexo privê é justaposta por dezenas de imagens de sites pornôs, Renata põe em evidência a hipocrisia da sociedade que, ao mesmo tempo em que as condena e marginaliza, as explora sexualmente pela prostituição e em sites pornô. Ao som da célebre e preconceituosa marchinha de carnaval Olha a cabeleira do Zezé (1963), ela mostra como as travestis são celebradas no carnaval com bailes próprios, aparecendo em capas de jornais e programas de TV – apenas um breve e glamoroso interlúdio que encobre a violência no restante do ano, quando as manchetes nas quais aparecem são sempre relacionadas a homicídios, espancamentos, mutilações e outras barbaridades. Se a caça às travestis foi legitimada pelo Estado nos anos da ditadura, com o apoio da população, o Brasil atual segue matando – não nos esqueçamos que somos o país que mais mata travestis no mundo, fazendo com que a média de vida delas seja de 35 anos. Oitenta por cento das vítimas assassinadas são negras. Situação que nesse momento neofascista que atravessamos vem se agravando de modo bastante preocupante.
Renata ficou nacionalmente conhecida após a censura ao espetáculo O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu e do Manifesto Representatividade Trans Já, de 2017, que critica a exclusão de corpos transgêneros no teatro, mesmo quando as peças encenadas têm personagens trans, reivindicando maior representatividade nos palcos. Com o Manifesto Transpofágico, ela expande essa luta, questionando a cisheteronormatividade de nossa sociedade, não só na nas artes, mas também na forma como se apresenta nas instituições jurídicas e políticas, nas ciências, na linguagem e no cotidiano. Ao expor seu corpo travesti, desnudando-se em público, Renata visa naturalizá-lo, humanizá-lo. Em entrevista sobre o espetáculo (Revista Cartografias MITsp) ela afirma que “é no convívio, e só com ele que poderemos quebrar essas folclorizações que permeiam corpos como o meu.”
A luta é longa, urgente, e está apenas começando.