Treinados para obedecer… E repetir
Crítica do espetáculo Democracia
Por Ivana Moura
Regimes não democráticos atualizam suas faces e estratégias, mas prosseguem produzindo feridas. E, coladas às cicatrizes das pessoas, estão o medo de errar, de arriscar, de ser singular. Mas, o que é mesmo acertar? Na vida íntima ou em coletividade? Qual a resposta absolutamente certa? No livro Facsímil (2014), traduzido no Brasil como Múltipla Escolha, o escritor chileno Alejandro Zambra, parte da lógica e da estrutura do antigo Teste de Aptidão Acadêmico – aplicado no Chile dos últimos anos da década de 1960 até 2002 aos candidatos a uma vaga na universidade – para traçar uma crítica contundente à ideia de meritocracia e conceitos agregados. A versão cênica de Felipe Hirsch (coprodução da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp, Fundación Teatro a Mil e Teatro de la Universidad Finis Terrae) gira a chave de leitura do modo mais lúdico da estrutura para dar um peso mais político, carregado já no título Democracia. Muitos países da América Latina vivem um golpe ou uma fraude – ou ambos, sinaliza já de cara.
Se, para Zambra, o teste é metáfora da concorrência capitalista neoliberal, com sua lógica de exclusão fantasiada de jogo, Hirsch salienta que os cadáveres estão vivos, comandados por uma voz over. Então, combinações aparentemente ingênuas se deparam com discursos oficiais.
Uma questão que vai pro palco: Sua casa: 1. Pertence a um banco, mas você prefere pensar que é sua 2. Se tudo correr bem vai terminar de pagá-la em 2033 3. Mora nela há onze anos. Primeiro com a família, depois com alguns fantasmas que também já se foram 4. Não gosta do bairro; não há praças por perto, o ar é poluído 5. Mas ama a casa, nunca vai abandoná-la A) 2-3-4-5-1 B) 3-4-5-1-2 C) 4-5-1-2-3 D) 3-1-2-4-5 E) 1-2-4-3-5.
Poderíamos entrar no jogo e criar outras combinações:
O que é escrever? A) Experiência; B) Vasculhar sua vida; C) Pessoal; D) Coletivo; E) Descobrir.
Prova de vestibular? A) Delícia; B) Meritocracia; C) Veléz Valas; D) Paulo Freire; E) ‘universidade para todos não existe’.
MITsp? A) Melhor festival de teatro do Brasil; B) Futuro; C) Resistência; D) Chuva; E) Balaio de gato
Felipe Hirsch? A) Gênio; B) Artista de teatro; C) Branco cis classe média no comando; D) Papel; E) Cabeleira.
Além do texto-base, a montagem utiliza outros autores, explora traços autobiográficos dos atores, cujas famílias sofreram algum tipo de opressão no regime de Pinochet.
No cenário, um letreiro luminoso (inspirado nos shows de Elvis Presley) com a palavra “Democracia” faz fundo para uma competição olímpica. As personagens A, B, C, D e E se revezam na resposta do exame. Correm pelo palco, suam, enquanto água cai do teto, ficam exaustos. Jeito sincopado de narrar com brechas para um humor irônico, mordaz. É um jogo que explora mapas semânticos supostamente sem sentido, com seus competidores vulneráveis entre impotências e inabilidades, tragados de culpas e vacilações. Ali, ninguém ganha, mas ao que parece, todos perdem.
Com subjetividades interrompidas em sua narratividade, como quando um deles fala que só conheceu os pais biológicos (que eram guerrilheiros) quando contava oito anos de idade (até então fora criado na Alemanha), essa encenação processa uma experiência desconfortável. Diria propositalmente exaustiva nas suas repetições. Democracia cansa ou exige mais que uma simples fruição nessa maratona sobre os supostos saberes ocidentais. Os exercícios viram metonímias para investigar processos mais profundo ligados aos incômodos com os governantes da América Latina, líderes que ostentam ignorância em igual proporção à arrogância.
Nos últimos anos, Felipe Hirsch vem investigando questões mais políticas, focado na colonização e em suas consequências. Democracia, o ótimo Fim, em cartaz no Teatro Anchieta, no Sesc Consolação, e Antes Que a Definitiva Noite se Espalhe em Latino América, que deve entrar em cartaz em São Paulo no segundo semestre, mergulham nessas veias abertas do continente, entre autoritarismo, pós-verdade, reality shows, fake news e tentativas de resistir. É uma trajetória que apresenta uma coerência temática, mas que se mostra muito diversa esteticamente. Um diretor que produz bastante e que, mesmo que possa gerar incômodos com suas peças, faz pensar. Urge, cada vez mais, pensar.