Sobre ringues e diálogos ou a cena como campo de batalha
Crítica do espetáculo O Alicerce das Vertigens
Por Soraya Martins
A peça O Alicerce das Vertigens coloca em cena o drama do teatro africano, traz o que o ator de África quer colocar dele no mundo. E o que ele tem a dizer a partir do seu lugar de enunciação, como diz Conceição Evaristo, não é uma história para ninar os da Casa Grande-Colonizadores. Aqui se fala sobre e a partir de um pensamento crítico e reflexivo, sobre modos outros de interpretar os processos históricos e de forjar outras condições de existência para os corpos da negrura. Enganam-se as pessoas (brancas) que pensam que aqueles que não falam (negros) não tem nada a dizer. Eles – os negros africanos, negros em diáspora – foram sempre silenciados. As máscaras de flandres existem! Existem corpos autorizados para o abate. A necropolítica fazendo a política do extermínio.
“Pode o subalterno falar?”, pergunta Spivak. Como criar espaços nos quais os subalternizados (não é uma condição inerente, como a palavra subalterno indica) possam se articular e, como consequência, possam ser ouvidos? A palavra-linguagem é um mecanismo de poder que pode tanto ser utilizada para manter o poder quanto para compartilhá-lo. Quando se fala de direito à existência, à voz (e ao direito a ser escutado), se fala de lugares sociais, de como certos lugares são invisibilizados, de como as diferenças são vistas na sua negatividade e significam desigualdade, de como só um grupo específico está autorizado a falar.
O diretor Dieudonné Niangouna tece um espetáculo textocêntrico, que, para além do ato de emitir palavras, se dá para que identidades historicamente silenciadas e desautorizadas possam existir. A palavra na sofisticação das metáforas e metonímias, na ironia cortante que faz com que o espectador sinta o cheiro fétido do empreendimento colonial. O delírio. O fantasma. A vertigem.
O Alicerce das Vertigens encena os fragmentos-vertigens de vida de dois irmãos, Fido e Roger, que veem o seu cotidiano na cidade de Brazzaville, capital da República do Congo, sua dimensão familiar-íntima, serem confundidas com a própria história da colonização do país. Dessa mistura, fragmentos-vertigens que vão do pessoal ao coletivo e volta de novo no pessoal, surgem histórias que os textos da História, as narrativas dos vencedores sistematicamente camuflam. Dessa prática emerge um significante novo que vai paulatinamente inscrevendo a peça/a performance em novos saberes sociais, culturais e históricos.
Cenário fragmentado. Fragmentos de imagens. Fragmentos de memórias mobilizados para dar conta das experiências negras fragmentadas em si mesma. A possibilidade de existir a partir do fragmento (que não é um processo de “desencanto” ou de desagregação social, de um mundo fragmentado e polarizado entre capitalistas e comunistas, da efervescência das vertentes pós-estruturalistas e desconstrutivistas, como acontece com o teatro contemporâneo branco-hegemônico), condição – sem possibilidades de escolhas, para os sujeitos negros moventes pelo mundo, devido à imigração forçada pelo capitalismo – para plantar a realidade de maneira outra, fazer cem milhões de revoluções, mostrar outras possibilidades de estar e ser negro em cena, de ser negro pensante no mundo, de revisitar o passado, não como uma simples enunciação oca, mas como uma tentativa, sempre retomada, de uma fidelidade àquilo que nele (passado) pedia outro devir. A possibilidade mesma de tecer um devir negro no mundo, apresentada no fim do espetáculo: tem-se uma tela branca vazia oferecida ao espectador pronta para ser colorida com histórias, memórias cosmologias, tecnologias e corpos negros. Pronta, como diz Jota Mombaça, para redistribuir as violências.
O teatro de Niangouna se apresenta como lugar privilegiado de produção de pensamento crítico sobre a história de África, do Brasil e do mundo, local de produção de história pública no sentido mais sofisticado e abrangente do termo.