Rompendo as paredes da casa de bonecas
Crítica do espetáculo Paisagens para Não Colorir
Por Daniel Toledo
Existem, decerto, múltiplos modos de se observar e experimentar um acontecimento artístico. Sem recair em binarismos sempre redutores, enquanto alguns trabalhos podem nos impressionam pela excelência e a sofisticação de seus procedimentos e recursos, outros ganham força pelo significado social e político que os sustentam. Afinal, para além da geração de produtos culturais, também se associam à atividade artística dimensões como o desenvolvimento de comunidades e redes de sociabilidade, o fortalecimento de grupos oprimidos e violentados e, quem sabe, a possibilidade de transformações e deslocamentos sociais.
Realizado pela companhia chilena Teatro La Re-Sentida, o espetáculo Paisagens para Não Colorir chama atenção por reunir, em cena, uma comunidade temporária formada por nove adolescentes com idades entre 13 e 16 anos, selecionadas a partir de oficinas e audições. Considerando as epistemologias e vivências dessas adolescentes, assim como de outras jovens que não foram selecionadas, a obra com direção e dramaturgia de Marco Layera e Carolina de la Maza convida o público a experimentar emoções, impressões e reflexões que, em possível síntese, problematizam a família patriarcal e a escola colonial, assim como os efeitos da moral cristã, conservadora e capitalista sobre a afetividade e a sexualidade humanas. Apesar das diferenças, ali se constitui uma comunidade.
Tendo como declarado ponto de partida um cenário social marcado pela estereotipação, a invisibilidade e o silenciamento de suas perspectivas, as jovens atrizes que conduzem a obra revezam-se em atos individuais e coletivos, dentre os quais depoimentos, entrevistas e breves encenações dramáticas, além de ações performativas e coreográficas que ao longo de noventa minutos se acumulam aos olhos de uma plateia predominantemente composta por adultos. Ainda que o tratamento dramático atribuído a algumas cenas por vezes lhes conduza à homogeneização, em muitos momentos somos surpreendidos com o aprofundamento de imagens, discussões e discursos, a exemplo de depoimentos que atribuem a devida complexidade a questões como a liberdade dos corpos e o reconhecimento da múltipla sexualidade humana. O que interessa, ali, não parece ser agradar aos adultos, mas desafiá-los à escuta.
Entre os debates que ganham força, figuram, por exemplo, a onipresença do assédio masculino e o peso da função reprodutiva sobre mulheres e meninas. Ainda se inscreve na obra uma robusta consciência em relação à sobrecarga das mães dentro das estruturas familiares, deixando ver que não raro também cabe às filhas uma intensa carga de trabalho emocional. Como nítido efeito de experiências de vida marcadas pelo silenciamento e a opressão, o que se produz é um diagnóstico precoce de solidão e desamparo que tanto a família quanto a escola, em muitos casos, têm se mostrado incapazes de curar.
A cura pode vir, então, da própria situação teatral, na qual diferentes solidões se encontram, e encontram também, ainda que pelo efeito do palco, a chance de se fazerem escutadas. Em uma das cenas de Paisagens para Não Colorir, há quem mencione uma remota casa de bonecas, convertida, conforme podemos ver, no elemento central da cenografia do espetáculo. Enquanto, na narrativa que ouvimos, essa casa era o lugar da solidão, ao longo da obra, por outro lado, se converte em um reduto de encontro, liberdade e subversão. E aí se processa um deslocamento.
Ainda que, como produto artístico, o espetáculo demonstre evidentes fragilidades, tais quais, por exemplo, o reforço de alguns estereótipos que pretendia desconstruir, parece inegável o valor do encontro entre essas adolescentes, assim como a experiência de se integrarem, como sujeitos, e não objetos, a espaços e conversas geralmente restritas aos adultos. Não numa posição que as silencia e anula, mas numa obra coletiva, ainda em curso, que pode lhes inspirar horizontes de individualidade, coletividade, visibilidade e voz.