A romantização do terror
Crítica do espetáculo Altamira 2042
Por Paloma Franca Amorim
Susan Sontag, no ensaio Diante da Dor dos Outros, é precisa na crítica aos efeitos da midiatização de tragédias e conflitos no campo jornalístico. Nesse texto, penso ser oportuno perspectivar o espetáculo Altamira 2042, de Gabriela Carneiro da Cunha, à luz do debate travado por Sontag, não na medida da informação, como sugere a escritora em relação às notícias galvanizadas pela lógica de proporcionalidade entre sanguinolência e o valor da manchete, mas da experiência performativa e, a partir daí, abrir interrogações sobre quais dimensões da tragédia de Altamira a obra de Carneiro da Cunha explora.
Altamira é uma cidade do estado Pará às margens do rio Xingu, esse mesmo que teve suas águas interrompidas pela imensa barragem de Belo Monte à qual nós, ativistas amazônicos, chamamos Belo Monstro.
Em Altamira 2042 a questão social se estabelece, numa inversão de prioridades éticas e estéticas, como tapume para a experimentação formal de movimentos frenéticos de luzes e sonoridades remissivas materialmente às aparelhagens, máquinas de música enormes da cultura nortista, e metaforicamente ao contexto dos beiradões do rio Xingu, emulando uma espécie de forma de vida da população sob os auspícios de uma interpretação absolutamente estrangeira às relações afetivas e sociais da localidade.
A autora do espetáculo assume com honestidade a posição distanciada sobre o tema tratado, contudo, esse mesmo distanciamento deflagra um problema básico de tradução sociológica que, por consequência, desnatura o tom de denúncia aparentemente objetivado na peça, fazendo-a adquirir uma outra finalidade estético política.
A organização da cena a partir de traquitanas e recursos tecnológicos como meios de evocação do imaginário amazônico faz vibrar um efeito de embelezamento da situação retratada, o que me parece um debate importante sobre a arte política contemporânea e sua relação com o público. Ao criar uma atmosfera de mitificação da Amazônia a partir da fricção entre a ideia “natureza/comunidade em risco” e o aparato tecnológico, Carneiro da Cunha despeja sobre o terror que temos vivido, como povo de rio, o verniz anestesiante do romantismo que opera na produção de uma segunda verdade, aquela que se dá a partir da apropriação criativa sobre a realidade e que, ao contrário do que se espera, deixa o espectador encantado com os possíveis jogos semânticos extraídos das atrocidades da própria vida. Altamira 2042 parece funcionar como evidenciação da originalidade e potência da linguagem performativa e de instalação, o que nos lança sobre os ombros, como um peso moral e político, novamente a inquietação de Sontag:
Agora, guerras são também imagens e sons na sala de estar.
Em uma mostra internacional de teatro, na modalidade de exposição de espetáculos brasileiros para um corpo de curadores internacionais, uma peça como Altamira 2042, concebida por uma maioria de artistas brancos do sudeste (vejam, esse dado indica um conjunto epistemológico e não a interdição daquele que pode ou não falar), flerta com um paternalismo e fetichização do trágico recorrentes na relação entre sul/sudeste e norte/nordeste brasileiros, integrando como obra uma economia da tragédia que se funda, não coincidentemente, na Europa neocolonialista da primeira metade do século XX.
Esse não é um problema individual de Carneiro da Cunha, e sim uma discussão ampla sobre o fazer artístico e suas nuances de tendência generalizante sobre conteúdos específicos, sociais, culturais, étnico/raciais, dolorosos.
O material audiovisual documentado na pesquisa e exibido no espetáculo através de uma máquina-ayabá é valioso. Permeado por relatos de ribeirinhos e indígenas, o filmete se revela substancial instante dos corpos e das existências sem o magnético filtro da benevolência. Aí parece estar uma fagulha interessante de sistema estético irmanado à partilha de uma tese política, entretanto, a profusão de elementos brilhantes, iluminações, estímulos visuais, soa como parte de um processo formal contraditório investigado teoricamente por Adorno em A Dialética do Esclarecimento: tantos mecanismos tecnológicos, tantos estímulos visuais, o acende e apaga do interruptor como meio articulador da linguagem, parecem quase uma triste ironia em uma obra justamente sobre um território espoliado que tem sido subtraído dos seus recursos hídricos, suas veias de rio, para produzir energia elétrica.