Por uma dialética do olhar
Crítica do espetáculo Cinco Peças Fáceis
Por Julia Guimarães
Na proposta do diretor suíço Milo Rau, o teatro poderia ser pensado como um dispositivo para se “olhar concentradamente” aquilo que muitas vezes é ignorado ou banalizado no cotidiano. Em Cinco Peças Fáceis, uma das três obras de Rau na programação da MITsp, esse olhar se volta ao cruzamento entre um episódio violento, o modo de representa-lo e as leituras da sociedade por ele favorecidas. No centro do acontecimento cênico, está a história de violência que chocou profundamente a sociedade belga nos anos 1990, relacionada aos crimes cometidos por Marc Dutroux, condenado em 2004 por violência sexual e assassinato. Para tratar desse caso no teatro, o diretor suíço elege enquadramentos e pontos de vista muito distintos daqueles observados nas notícias e documentários sobre o episódio usualmente encontradas na internet.
O primeiro desses enquadramentos diz respeito à opção por trabalhar com um elenco formado por (pré-)adolescentes de 11 a 14 anos (há apenas um adulto em cena e outros que aparecem em vídeos). Ao lado dos efeitos de autenticidade/veracidade, empatia e simultâneo estranhamento que aquelas presenças projetam à obra, o que se destaca no trabalho é o modo como atuam e o contexto dramatúrgico no qual são envolvidos. Logo na primeira cena – que refaz o momento de ensaios e seleção de elenco – respondem a perguntas filosóficas como: “o que é a liberdade?”, “o que significa atuar?” ou “do que você tem medo?”. Nas entrelinhas desse procedimento, haveria o pressuposto de que os jovens integrantes do elenco possuem autonomia para refletir sobre temas usualmente vetados a essa faixa etária, cuja emancipação intelectual e emocional tem sido histórica e socialmente subestimada pelos adultos.
É também esse pressuposto o que parece legitimar Milo Rau a trabalhar com adolescentes para recriar em cena uma história de violência sexual. Divididas por títulos que fazem lembrar os recursos épicos brechtianos, as ironicamente batizadas “peças fáceis” abordam depoimentos de pessoas envolvidas nessa história, como o pai do assassino, uma das vítimas, os pais de outra e um policial. A qualidade cotidiana da atuação – viabilizada por dispositivos tecnológicos de reprodução e ampliação como vídeo e microfone – ajuda a construir essa distância sobre o fato, o que é ressaltado pelo jogo no qual crianças no palco refazem as ações dos adultos no vídeo. Não há lugar para os tratamentos sentimentais e moralistas usualmente explorados pela mídia em torno de um caso como esse.
O fato de que são crianças reencenando um crime que teve como vítimas pessoas da mesma idade ajuda a projetar a ideia/pergunta (presente em uma mesa do eixo Olhares Críticos) de que a “manutenção de uma posição de ignorância” estaria relacionada a uma “cultura facilitadora da violência na infância”. Provavelmente a cena mais impactante da peça é aquela em uma das atrizes refaz o relato de uma vítima sobre o que ocorria no cativeiro de Dutroux. Ali, o que parece estar em jogo é também a reflexão sobre como recriar no palco uma cena de pedofilia com recursos que, aos olhos de uma sociedade moralista e pedófila, corre o risco de ser visto como reforço daquilo que se deseja denunciar. Ou ainda, a problematização sobre o grau de autonomia das crianças/adolescentes para lidar com fatos usualmente censurados para sua faixa etária – embora digam respeito a uma violência imputada a esse grupo. Nesse caso, o mecanismo da distância ganha extrema relevância justamente porque tem o potencial de suscitar a reflexão acerca do modo mesmo como olhamos. E aí estaria outra importante chave relacionada ao teatro como esse dispositivo para mirar detidamente histórias por vezes já bastante conhecidas e banalizadas.
Por outro lado, Cinco Peças Fáceis busca também propor relações entre o caso Dutroux e a herança colonial belga. Rau já chegou a dizer que o episódio poderia ser visto como uma “alegoria do declínio das potências coloniais e industriais ocidentais”, o que se evidencia sobretudo pelo depoimento do pai do assassino, Victor Dutroux, representado com toda a revelação dos artifícios teatrais por um dos adolescentes do elenco. Nele, aparecem marcas do privilégio e do viés opressor de quem viveu na antiga colônia belga do Congo até sua independência em 1960. Ao mesmo tempo, o pai declara que atualmente gostaria de ter o sobrenome substituído pelo de Patrice Lumumba, herói da independência congolesa fuzilado com apoio logístico da Bélgica. Nas entrelinhas dessa afirmação, há um vínculo entre o trauma coletivo projetado pelo crime de Dutroux e a constatação de certa decadência moral de um país em aspectos muito mais amplos.
No entanto, esse último enquadramento mais político da história não parece ser, de fato, aquilo que se destaca na obra. Sobretudo quando apresentado no Brasil, onde uma série de informações contextuais são por nós desconhecidas, o que ocorre é certo esvaziamento de alguns sentidos da obra. Soma-se a isso o fato de que a própria projeção social do psicopata se enquadra (embora de modo mais problematizado) naquilo que Maria Rita Kehl chamou, em debate após espetáculo, de “personagem sem dialética”, que “encarna o que nos conforta” justamente porque facilita projeções sobre uma ideia de mal absoluto que estaria sempre fora de nós.
Embora os dois enquadramentos aqui analisados ofereçam ao conhecido episódio traumático outras leituras – e o jogo com a representação e a reflexão metateatral construa a necessária chave do distanciamento – ainda assim se trata de uma história que, ao contrário daquela retratada em A repetição (outro espetáculo de Rau presente na MITsp), parece ser menos emblemática para se pensar as contradições políticas do nosso tempo, justamente porque remete a um crime que tem um forte componente associado a uma patologia e não tanto aos aspectos da pedofilia e da violência que se conectam às heranças do colonialismo patriarcal – eixo vinculado ao capitalismo desde a sua formação. E é nesse sentido que parece mais difícil criar pontes de fato justas entre a história contada e os contextos políticos, éticos e morais que se deseja abordar.
Numa comparação com A Repetição, surgem desdobramentos distintos de uma mesma pesquisa – que envolve tanto aspectos como a revelação de um processo de criação, da vida dos atores, passando pela pergunta sobre como levar episódios violentos e traumáticos para a cena, até a tentativa de relacioná-los a uma dimensão política/contextual. No entanto, em A repetição, tanto a provocação sobre o ato de olhar – materializado sobretudo na cena de 20 minutos que encena o assassinato de um jovem homossexual na Bélgica – como também a exploração de um episódio chocante para tecer um retrato sociológico de uma cidade e de um país parecem ter mais eficácia justamente porque a história talvez seja mais favorável para se construir tais conexões.
Vale ressaltar que o fato de Milo Rau estar nesta MITsp com três espetáculos – é o artista com maior repertório da história da mostra, numa acertada opção curatorial – colabora para uma compreensão sobre o projeto do diretor. Ao lado dos aspectos analisados aqui, o que talvez tenha feito dele um nome a cada ano mais popular (e também controverso) na cena teatral contemporânea é que o diretor não deixa de situar a emoção como o ponto mais relevante de suas obras. Embora possa parecer um pressuposto questionável, é justamente essaa carga de afetividade, posta lado a lado ao distanciamento e às questões contextuais, o que confere aos seus trabalhos alta relevância tanto política quanto estética.