O rebuscar da simplicidade
Crítica do espetáculo Partir com Beleza
Por Deise de Brito
Já faz três anos que eu tive uma grande perda. Quero dizer, há três anos alguém que era parte de mim, partiu. Antes, eu já tinha presenciado os falecimentos de parentes, inclusive avós, no entanto, a ida de uma amiga-irmã foi a minha primeira “dor-perda”. Nunca me distanciei do fato, nem o examinei. Essa noite o autor, diretor e performer Mohamed El Khatib me proporcionou tais práticas. Partir com Beleza é um trabalho que opta pelo rebuscamento. O rebuscar da simplicidade. O simples está nas escolhas visuais até a forma como o performer comporta-se na cena e para cena. Mohamed é um narrador e observador da própria história, ao compartilhar conosco o processo de adoecimento e falecimento de sua mãe.
Televisão. Imagens projetadas. Caderno de notas. Cópias de alguns documentos. Texto. Mesa pequena. Tais elementos acompanham o artista na partilha da sua experiência com a recepção. Há um desapego ali e não uma indiferença. Com toques sutis de humor no texto, a mesma lucidez e serenidade presentes no modo de performar de Mohamed, parecem atravessar a plateia que o assiste. Provavelmente, as lembranças de quem está em cena se cruzam às memórias de quem vê aquela orquestra documental. Foi o que aconteceu comigo, pelo menos. Perguntas aparecem.
A perda é superável ou ela é (re)significada?
Marroquino e de família islâmica, Mohamed El Khatib divide conosco a relação dele e dos seus com a descoberta do câncer de fígado da sua mãe. Já radicados na França, a família se depara com saídas ocidentais e ao mesmo tempo mantém a fé no Alcorão e sua doutrina. De uma doença hepática para um câncer de fígado. E ninguém é compatível para impedir a perda. A impotência ali se revela, seja no oriente ou no ocidente. O mundo visível tem os seus limites.
Há tempo limite para o luto?
Ao ver Mohamed observar as imagens projetadas ou escutar/ler os diálogos gravados durante o tratamento de sua mãe, pergunto-me se o luto não seria eterno. Se a memória revivida não é uma forma de dialogarmos positivamente com ele. A estabilidade da pessoa que está em cena, tecendo uma narrativa contínua e não cronológica, revela um estágio do luto e não o fim dele.
Dividindo datas importantes e momentos significativos, Mohamed interpreta a própria dor, assistindo-a de fora. O dizer do texto e o deslocamento do artista pelo espaço cênico, utilizando-se de recursos que remetem ao Teatro Documentário, imprimem uma lógica peculiar ao trabalho. A coerência coexiste com a serenidade na enunciação das palavras e a calma nos movimentos.
“A morte não dá força, fragiliza.”
Uma cópia da declaração de óbito que traz no verso uma certidão de nascimento.
11 de setembro.
20 de fevereiro de 2012.
Yamna IOUAJ.
Essas foram as marcas que estão em mim e que respaldam esse texto. Há, também, uma curiosidade a respeito de quais foram as sensações deixadas pelo público em Mohamed El Khatib, já que sua presença se envolvia com a nossa. Em tempos de efemeridades e relações superficiais, o performer propõe uma experiência que propicia um retorno às nossas perguntas acerca de quem perdemos ou poderemos ainda perder, desordenando qualquer ideia de superação imediata.