O peito do pai

Crítica do espetáculo O Alicerce das Vertigens

Por Paloma Franca Amorim

O Alicerce das Vertigens Dieudonne-Niangouna Foto Guto Muniz

Muito pouco se conhece no Brasil sobre a colonização dos povos africanos, esses que em contusão diaspórica são responsáveis pela formação, ao lado dos povos indígenas, da maior parte de nosso quadro racial e do imaginário social e político que, em uma dinâmica viva e de oscilação, ora é esmagado pelo poder dominante, pautado pela voz histórica do colonizador, ora torna-se substância primeira de luta e resistência.

O Alicerce das Vertigens, escrito e dirigido por Dieudounné Niangouna, parece reivindicar a palavra histórica à luz dos vencidos – termo injusto para definir o processo de disputa ideológica encampado pelos povos do mundo subalternizados por conta do agenciamento branco/europeu do território e, portanto, do capital. No espetáculo que se desdobra ao longo de quase duas horas em movimentos justapostos, rasgados à navalha e colados como um quebra-cabeça de atrocidades de ordem pública e privada em Brazzaville, capital da República do Congo, manifesta-se a aferrada busca da narrativa possível a respeito de um passado íntimo que traduz em signos violentos a experiência da realidade citadina, do entorno social para além da residência familiar.

O enredo conta a trajetória de Roger e Fido, dois irmãos que se percebem em face de uma crise social, estruturante de seu processo familiar, quando da morte do pai, Joachim. Esse conflito emocional expande-se em universo político e se configura como expressão de uma dolorida análise sobre os temas da (neo)colonização, da territorialidade e da memória.

Valendo-se de uma série de imagens e ações cênicas em contiguidade, como num emaranhado-estopim de fagulhas históricas apagadas sistematicamente pela versão do colonizador europeu, Niangouna dialoga com algumas teses contemporâneas a propósito do desenvolvimento da historiografia como um campo aberto, espaço da intersecção entre o acontecimento factual, objeto do passado, findo, e o tempo presente, espaço da aprendizagem, através da qual esse mesmo passado pode ser elaborado.

Segundo o antropólogo francês Marc Augé, no ensaio O Passado, A Memória, O Exílio:

Na África, especialmente, a colonização foi um fenômeno repentino e rápido, e gerações de crianças e de jovens foram convidadas a admitir, de um dia para o outro, que o mundo no qual eles haviam sido criados e educados não tinha sentido. (…)”

O Alicerce das Vertigens Dieudonne-Niangouna Foto Guto Muniz

Em O Alicerce das Vertigens o lugar dos significados da origem e do pertencimento e seu compulsório esvaziamento é campo de batalha, entretanto, há uma espécie de cisão formal/política na abordagem estética do assunto uma vez que o espetáculo é organizado e, por assim dizer, resolvido através da utilização de excessiva retórica, técnica da palavra ocidental contornada por um princípio de racionalização que acaba reproduzindo o valor linguístico da dominação filosófica e cultural europeia, a mesma que se procura criticar.

É evidente que para a organização do discurso cênico, sobretudo quando comentada a produção africana ou ameríndia, não existem apenas as vias duais, estereotipias também fruto da colonização, associadas a uma lógica de oposição entre razão e instinto, mas a grande quantidade de prosa narrativa no espetáculo acaba solapando a potência das imagens efusivamente dialéticas apresentadas em cena como, por exemplo, a matança de vacas e, posteriormente, a degola de um homem – o que, por efeito, evidencia e condena uma indignação seletiva do público brasileiro, majoritariamente branco na noite de ontem, quanto à morte de centenas e milhares de pessoas negras no globo.

Em determinado momento do espetáculo, um dos filhos de Joachin, morto por rajadas de tiros no peito desferidos pelo próprio irmão, diz:

A gente podia olhar o horizonte através dele.

Niangouna conforma nessa frase um modo de enxergar as tragédias de um país espoliado pelo mercantilismo colonial e neocolonial e seus efeitos de desumanização pelas retinas do afeto familiar, as alianças contraditórias do profundo de dentro.  O homem vê o horizonte através do pai, porque seu peito está aberto pelas balas e também porque, sim, através dos laços ancestrais, num processo de ida e vinda no tempo, é possível perspectivar algum horizonte, ainda que tão longe, ainda que inexistente.