O avesso da modernidade

Crítica do espetáculo A Boba

Por Daniel Toledo

A Boba

Estamos em meados da década de 1910. Enquanto o território geográfico e simbólico que hoje conhecemos como Brasil busca, aos trancos e barrancos, afirmar-se como uma república moderna e progressista, fenômeno semelhante acontece nas artes visuais então produzidas por criadores e criadoras tupiniquins. Entre os caminhos encontrados por esses artistas, que dali a alguns anos organizariam a famigerada Semana de Arte Moderna de 1922, figuram recorrentes expedições ao supostamente desenvolvido Norte Global, onde vanguardas como o expressionismo, o cubismo e o futurismo atribuíam novas fisionomias aos tradicionais suportes das artes visuais, notadamente a pintura e a escultura. É nesse contexto que a jovem artista paulistana Anita Malfatti, filha de pai italiano e mãe estadunidense, cria a obra A Boba, apontada ainda hoje como importante ícone do então emergente Modernismo brasileiro.

Um longo e atribulado século se passou desde então. Considerando especificamente o campo das artes, múltiplos caminhos e linguagens se apresentaram, sobretudo a partir dos anos 1960, convocando os corpos de espectadores e espectadoras a atitudes de fruição que em muito superam a mera contemplação do objeto ou acontecimento artístico. É nesse contexto que o performer, coreógrafo e escritor carioca Wagner Schwartz estreia, em 2019, a performance A Boba, tendo como ponto de partida o encontro entre seu próprio corpo e uma réplica da referida obra de Anita.

Diferentemente de uma obra teatral convencional, aqui não há trilha sonora, cenografia ou mudança de luz. Há apenas o espaço teatral, o corpo do artista, vestido com calça, camisa e sandálias, e um objeto que ele traz nas mãos. Percebemos, desde o início, que se trata de um quadro – mas a imagem, curiosamente, permanece voltada para trás durante a maior parte da performance. Talvez não seja, portanto, somente a imagem moderna que nos interesse, mas também o seu avesso, traduzido ali pela materialidade bruta do objeto que o artista tem nas mãos.

Adotando, inicialmente, uma atitude humilde, insegura e hesitante, o performer não mira a plateia nem reconhece o amplo espaço de cena. Experimenta, a partir de variadas estratégias corporais, apoiar o objeto no chão, mas não sucede em nenhuma delas, revelando o equilíbrio instável de uma obra feita exclusivamente para se pendurar em paredes. Como uma espécie de palhaço triste e ensimesmado, quem sabe o bobo de uma corte que já não se interessa pela arte e pelos artistas, sugere, sempre acompanhado por seu objeto de estimação, diferentes imagens de esforço, fracasso e exaustão.

Passamos, ao longo da apresentação, por criador e criatura, assim como por um losango instável que talvez lembre a bandeira de um país que custa a permanecer de pé. Testemunhamos um homem montado em um quadro, como as estátuas urbanas que forjam a nossa república. Talvez haja ainda alguém que urine na rua, durante o Carnaval, e até mesmo o alvo de uma batida policial. Ora o performer quer livrar-se do quadro, ora parece utilizá-lo como instrumento para abrir caminho, desbravar matas, apagar fogo, acender brasa. Com o objeto nas mãos, espanta mosquitos, galinhas e cachorros, protege-se da chuva que vem do alto e também do horizonte. Aos poucos, no entanto, os movimentos ganham contorno de dança, com giros, alongamentos, variações de ritmo e duração. Em meio a uma ação contínua e sem repouso, o som dos passos apressados vira trilha sonora. Por vezes até vemos a face nobre do quadro, mas, por muito, o que temos é somente o avesso, de modo que a contemplação permanece como um desafio.

Como num ritual voluntário de tortura, o corpo do performer caminha aceleradamente para a exaustão. Já não há prazer nem beleza na caminhada, e o quadro-objeto deixa de ser estandarte para se tornar carga pesada. Deitado no chão e exausto, o bobo sem corte parece soterrado e ferido, arrastando-se com vestígios de uma energia vital que, apesar dos pesares, teima em não secar. É a respiração, então, que se torna trilha sonora para o derradeiro ato de uma modernidade em via de esgotamento.

Finalmente podemos contemplar a imagem, e a figura que vemos ali, ainda que desvie os olhos do observador, também parece nos observar. Se ao longo de toda a jornada não tivemos o olhar do bobo ensimesmado, recebemos, por fim, o olhar da imagem. Enquanto o corpo do performer se torna objeto inerte, e objeto-quadro talvez apareça, agora, como um corpo vivo. A Boba, de Anita Malfatti, parece, por alguns instantes, velar por ele, e, quem sabe, por nós também.

Assim que o performer sai de cena, no entanto, o nobre objeto artístico desaba e já não olha por nós. Temos, ao fim, apenas um artefato de madeira e tecido, imóvel e abandonado no chão. Abandonado como as sandálias do artista, agora largadas no espaço, tais quais as imagens-memória da jornada antimoderna que acabamos de testemunhar. Como três signos mortos de uma modernidade perdida que já não cabe – se é que um dia coube – em nossos pés.