Netuno é travestruz
Crítica do espetáculo MDLSX
Por Dodi Leal
Quais os fundamentos de programação visual e sonora das monstruosidades em cena? Em MDLSX, Silvia Calderoni escancara-se ao público e compartilha conosco seu percurso investigativo a respeito de como os saberes médico-patológicos controlam as corporalidades por seu vocabulário de gênero. Em sua transpofagia à la italiana, a peça performativa da companhia Motus (fundada em 1991 na cidade de Rimini) instaura um espaço cênico deixando nítido que, enquanto o pensamento da medicina diagnóstica visa a tutela normalizadora de desvios dos padrões sociais, as desobediências de gênero são da ordem do fazer artístico.
Menstruada ou monstruada, a cena monstra que vemos em MDLSX é de um peixinho que cresceu e hoje, Netuno, nos convoca a insurgir contra a cisnormatividade. A dança do deus romano é muscular, a magreza das vértebras saltadas e a pesquisa de movimento se associa às sugestividades cênicas do sutiã teórico, do pós-pornô e da pelugem suvaquiana e virilar. Era um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones, jogador de futebol e dançarino do cotidiano. O enunciado discursivo cita Apola masculina e Dionísia feminina, mas é netuniana a força cênica que desenha o corpo de Silvia no espaço. O campo onírico dos mares vibrante nas águas da projeção de vídeo tira a performance de gênero do imaginário escultural das artes plásticas e o desloca para o mergulho e a natação, a dança no mar induz musculaturas e desbanca qualquer receituário hormonal. Um tapete laminado em forma de triângulo, apresentado simultaneamente à projeção, é logo rearranjado pelo Silvia para formar seu traje de sereio. Sublinhemos o enunciado estético da peça como se Silvia nos dissesse: SEREI O, não A. E você, o que será?
Os dispositivos de iluminação cênica de gênero da encenação combinam o DJ-set com bolas e lanternas de LED. A mesa com luminárias e o vídeo em looping de um círculo hipnótico são trilhas visuais que estimulam a dança da cena, bem como as reflexões práticas in loco sobre as dinâmicas de figurino e suas emperragens: zíper que não fecha, enchimento de sutiã, calcinha/tanguinha com pau de pelos. Luzvesti é um conceito que não se reduz ao oxímoro visual entre luz e sombra desenhando as desobediências de gênero no corpo. É também sobre rever os contratos sexuais que legitimam a penetração e o depósito de sêmen como normas de afeto. Pois bem, se na iluminação arquitetônica a luz zenital é a incidência solar em um ambiente por meio de pequenas ou grandes aberturas na cobertura (como claraboias, átrios e cúpulas), a iluminação cênica de gênero em MDLSX é uma luz genital: um raio de luz verde simula um sensor de movimento a laser; com o auxílio de um laquê, Silvia torna visível a luz que copula. Luz que penetra a vulva também pode produzir orgasmos em pixels? A interação ininterrupta entre efeitos de áudio a partir de gravação de voz em microfone com os efeitos de vídeo produzidos com gravações com câmera ao vivo e outras prévias (às vezes sobrepostas) nos fazem perceber que a digitalidade contrassexual na qual a luz se insere não apenas provoca a dialética corpo-tela mas nos faz perceber que, a genitalidade e a penetração deixaram de ser funções de órgãos genitais há muito tempo, se é que um dia foram. A arte tem sido mais genital que os genitais, a subjetividade e o embate de ideias têm sido mais penetrativas que a penetração.
Hormonização é também sobre reaprender a caminhar. O desengonçamento corporal que vemos em cena nos remete ao avestruz, maior ave do mundo (não é a ema!). Se os relatos de que a altura e a fineza do corpo de Silvia o aproximaram do apelido “tábua de passar roupas”, o termo correspondente que cunhamos nas transgeneridades brasileiras é travestruz (travesti + avestruz). O peixinho cênico é uma ave dos mares que dança ao desobedecer gênero. A figura de luzvestruz também cabe: quando ele quase enfia sua cabeça dentro de um refletor de luz instalado no palco sob um tripé não são mais os efeitos neon ou festa da iluminação que definem a visualidade cênica de gênero, mas sim a monstruosidade desengonçada da estrutura corporal formada no jogo entre luz e sobra.
Se a medicina trata a subjetividade como uma mala de viagem (como se houvesse um gênero no endereço de partida e outro no destino final), em MDLSX a mala não pode ser despachada. Ou foi extraviada. A arte cênica nos ensina aqui que as transgeneridades não se tratam de um processo de disforia de gênero, mas sim de euforia de gênero. As grandezas de Paul Preciado e Alejandro Jodorowsky trazidas juntas à cena (o diálogo entre eles é interessante, mas já não exatamente atual), se conjugam com provocações interessantíssimas como o próprio título da peça que ironiza as siglas fracassadas LGBT, LGBTIA+ LGB… todas elas assentadas em processos cardapialistas, monossexuais e em escala. Estão todas à serviço da cisgeneridade, como se pessoas trans não tivéssemos práticas sexuais. Dissidências sexuais e desobediências de gênero não são processos excludentes e a CISciedade pouco tematiza o gostar e o não gostar como processos subjetivos e sociais. Não é, enfim, o frisson de meio-sexo ou meio-gênero que tem mais impacto no título MDLSX, mas sim o zoar com este pensamento em letrinhas (a maioria consoantes, pouquíssimas vogais), já bem defasado: sua naturalização não nos faz perceber que romper ou não com as normas de sexualidade e gênero é algo que diz sobre todas as corpas, sem exceção. O lema aqui é nítido: chega de acrescentar letrinhas, percebamos que as transgeneridades são um Direito Humano. E todas as tais letrinhas são formas trans.
Na mitologia romana, Netuno é criador de cavalos. Na mitologia italiana de MDLSX, Netuno é um travestruz que cavalga na mala criada pela medicina para nomear as nossas corpas. Os fundamentos de programação visual e sonora das monstruosidades que o público é convocado a fruir não são médico-patológicos e não estão apenas na corporalidade da cena, se indissociam da corporalidade da/o espectador/a e de seu cotidiano. Monstruar gênero, na cena e no cotidiano, é perceber que a lógica computacional de som e imagem está em constante tensão e constante tesão com a lógica estética das políticas de chênero, de zênero, de fênero ou qualquer outra letrinha insossa ou sonsa que se queira pôr na frente.
Aliás, um olhar de trans pra frente também depende de você, leitor/a da crítica, leitor/a da cena. Luzvestruzes da teatra.Netuno é travestruz <h6>Por Dodi Leal</h6>