A morte pelo sol
Crítica do espetáculo Boca de Ferro
Por Paloma Franca Amorim
Estávamos numa manhã de quase sol, ali perto da praça Roosevelt, sentados um ao lado do outro para um breve encontro porque ele logo voltaria para o Rio de Janeiro. Havia acabado de chegar de uma dessas viagens internacionais que agora tem feito depois que se tornou dançarino/performer. Eu estava preocupada porque parecia aéreo, fiquei calculando a quantidade de neurônios, sinapses, líquor, que entra em combustão, resseca e se extingue em seu cérebro quando ele realiza o Boca de Ferro. Talvez, por causa do espetáculo, Ícaro estivesse ficando sem memória, o cansaço físico e mental era aparente. Diante disso eu confessei não gostar do trabalho, porque me incomoda politicamente vê-lo, caboclo amazônico periférico, babando e suando feito um animal em cena. Que discursos sobre nossa região essa imagem alimenta? Queremos mesmo como artistas do norte enaltecer a tese violenta do bom selvagem? Ele virou para mim muito serenamente, coisa que puxou da sua avó, dona Manuela, e disse que eu não devia recortar tudo sob o viés antropológico: algumas coisas acontecem no campo do fenômeno, Paloma.
Arregalei os olhos. A manifestação de sua inteligência e generosidade me abriu outras portas para interpretar o Boca de Ferro, esse trabalho de dança/performance/instalação complexo realizado pela Invisíveis Produções, parceria entre as coreógrafas Marcela Levi e Lucía Russo. Através desse trabalho podemos ver o agenciamento de um quadro de referências do contexto musical popular paraense, das produções caseiras audiovisuais que constituem o território cultural da internet e o corpo fenomenológico admitindo esses elementos como parte vigorosa de suas paredes, seus tecidos e pulsação.
Quando éramos crianças saíamos vagando pela cidade, às vezes sem rumo, com a curiosidade de uma juventude que quer tudo ser e tocar. Eu sentia que o meu amigo era uma extensão de mim. Uma vez escrevi no diário, embalada pelo encontro com o mito de Ícaro, o labirinto do Minotauro e a morte pelo sol: qualquer dia desses eu acordo e saio voando.
Ontem assisti ao Boca de Ferro novamente para escrever esse ensaio crítico. Boca de Ferro é o nome que se dava as aparelhagens no Pará há algumas décadas. A massa sonora que ocupa nossa terra, nas ruas, nos barcos, nos beiradões, evidencia a recusa ao silêncio – talvez por já termos sido tão emudecidos e folclorizados pela política e cultura brasileiras ao longo da história.
O corpo em Boca de Ferro é a vibração das ondas sonoras em seu estágio limite de performatividade, a escatologia brota dos poros do performer como o sumo de um organismo que em níveis celulares começa a se tornar um gás, a própria atmosfera, o clima, esfumaçando a dicotomia entre razão e natureza.
Ícaro, em Boca de Ferro, sublima-se nuvem e depois chove, eu sinto nojo dessa chuva porque é cuspe e suor, mas é também as tardes de temporal em nossa amada Belém, a necrópole da Amazônia. O corpo já não é um corpo, é uma engrenagem orgânica de eventos sucessivos e fragmentários, campo de passagem do acontecimento estético, espaço sem identidade que eu, desesperadamente antropológica, quero a todo custo identificar a fim de atribuir-lhe origem, matriz, biografia, um lugar de fala ou a fala de um lugar.
A cena se estrutura um dínamo, o desenho de luz de Isadora Giuntini e Catalina Fernández costura um ambiente laboratorial preciso, simples e justo para a experiência. Boca de Ferro acontece nesse território quase reduzido ao mínimo possível de estímulo discursivo pelos movimentos de iluminação e pela disposição do público que pode acionar o tempo presente com liberdade, isso é, caminhar, mudar de lugar, viver a experiência de acordo com o próprio desejo. Não raro, o “Corpo-Ícaro” irrompe caoticamente, navalha no ar, e fura o cerco do conforto dos espectadores, fazendo-os fugir não dele, mas do fervedouro de braços, pernas, dorso, sexo, fluxos, olhos, dentes, infiltrando-se em tudo que se manifeste como espaço de vida e de morte. Nesse ponto, já fomos tragados para o lado de dentro da dança, o estômago, as vísceras, o conjunto arterial bruto. “Corpo-Ícaro” se torna uma vez mais a extensão do corpo do outro, dos outros, é angustiante. Na infância eu jamais poderia desconfiar que seria assim, que a realização da prece viria dolorosa, abrindo feridas nos pés. Calos, sendas, mapas. É o dia de acordar e sair voando. Não é tão bonito assim. Não é nada bonito. É feio. Dói. Eu não gosto da peça, mas isso não importa.