Mas o impossível virá e o impensável é inevitável
Crítica do espetáculo MDLSX
Por Juliano Gomes
De cara, este trabalho da companhia Motus se diferencia, em pelo menos dois aspectos, de uma tendência do teatro documental ligado às questões íntimas e políticas. O primeiro é que apesar de tecer uma precisa análise das dimensões de vivências da desobediência de gênero, sem esquivar dos efeitos cruéis a que os corpos desobedientes são submetidos, MDLSX recusa frontalmente o tom denuncioso e a produção de um corpo-vítima na cena.
A opção da montagem é criar uma espécie de festa-ritual mediada principalmente pelo uso intenso de músicas pop e do círculo, no fundo do palco, onde são projetados vídeos. A peça opera por constantes fusões e sobreposições, transformando em procedimento conceitual as ideias relacionadas à política de gênero. Os signos masculinos e femininos do corpo da atriz são acompanhados pela projeção de imagens pré-gravadas combinadas e imagens filmadas ao vivo, músicas executadas pela atriz DJ, outras inseridas pela equipe técnica da peça e descrições realistas com declarações recitadas. Todo expediente aponta para ações que buscam a combinação efêmera, mutante, para constituir a urdidura do trabalho.
O segundo aspecto é a crucial zona de opacidade que o trabalho institui. Quebrando a lógica de um acordo transparente com a plateia, onde se acorda tacitamente dizer somente “verdades biográficas”, aqui, em dado momento, percebemos que as datas dos acontecimentos narrados no texto não batem com uma biografia possível da atriz Silvia Calderoni. O discurso é propositalmente impuro, assim como as demais estratégias de composição. Quebra-se assim uma relação confortável que vem sendo fortalecida entre peça e plateia, em especial com assuntos e corpos não cisbrancos, onde estes obrigatoriamente falarão “a verdade”, contarão sua história invisibilizada. Essa tendência reflete uma das principais características do ethos neoliberal, que é o “não há alternativas, não há outras formas”.
O inimigo aqui é a normatividade em todas as suas dimensões. Portanto, a peça se estrutura como uma espécie de festa, frenética e melancólica, que trabalha por fazer variar seus elementos cênicos, criando modos expressivos mutantes a cada novo momento. MDLSX inventa sua própria forma, ora com corpo frenético, ora parada, fundindo memórias, ficções, teoria, manifestos. Diversos elementos cênicos tem uma característica evanescente e uma espécie de função dupla: o spray de cabelo, que fixa a forma, e logo depois se desfaz, e que, permite ver, em combinação, a luz laser, quando a sala está escura.
A coerência do gesto de operar opacamente é a de conceber afinal histórias impossíveis. Como diz a frase do filósofo Paul Preciado no programa da peça: a mudança necessária é tão profunda que a chamamos de impossível / tão profundamente que a chamamos de impensável. Mas o impossível virá e o impensável é inevitável / (O feminismo não é um humanismo)”. Esse programa político pede nada menos do que desordenar os sistemas expressivos, os modos de sentir, falar, ver, ter prazer, encenar e tudo mais.
As músicas pops tocadas com a delicadeza e precisão de uma DJ ressaltam não só uma dimensão rítmica do trabalho que é seu traço essencial, mas como também essas canções são uma espécie de coro ao drama principal. A dramaturgia do espetáculo é a da variação de tons, intensidades, uma modulação fina do que eventualmente parece acessório, uma urdidura da diferença, como método. Muitas vezes a “narrativa” está em segundo plano (mas quem disse qual plano deve ser primeiro?) como na canção Despair do grupo Yeah Yeah Yeahs. Esta faixa parece conter o matiz emocional do trabalho – essa mistura de aceleração desesperada com um coração doce e melódico – e uma letra que narra uma linha poética que pode facilmente ser relacionada a este romance de desformação do desabrochar de uma jovem dissidente de gênero. (Não se desespere, você está aí / do começo ao meio ao fim / Não se desespere, você está aí). Viver e encarar a indefinição constituinte é se aproximar a sensação de não existir, é viver o impossível, o inexistível, encarná-lo. É este o centro dramático de MDLSX esse manejo do existir e não existir, performado através de ações de combinação, fusão, composição. Isso, com a vitalidade de uma festa, e a mortalidade historicamente inerente de um corpo dissidente, desdobrado em potência, numa peça que, deliberadamente não acaba.
E quando nossas palmas ao final, disparam o dispositivo que muda a iluminação pelo nosso estímulo sonoro, o ciclo de interrelações alteradoras se confirma e se expande, revelando a alegria latente do “não humano” colocado em conexão direta conosco. Humanismo é xará da normatividade. O impossível e o impensável sempre estiveram por aqui, é questão de coragem, prazer, energia e exercício, desejá-los.