Mão na testa e trans pro frágil
Crítica do espetáculo Manifesto Transpofágico
Por Dodi Leal
O que as corpas cisgêneras têm a aprender com as corpas transgêneras? Em Manifesto Transpofágico, Renata Carvalho opera algumas inversões de lógica que abalam a naturalização da cisgeneridade. Mas não só: sublinham a fragilidade da subjetividade cisgênera. As pessoas cis que se estremecem com o protagonismo trans em cena, CIStremecem também enquanto epistemologia dominante de corporalidade. Ao dizermos que um corpo é uma corpa, por exemplo, colocamos em risco as cosmologias sociais fracassadas de genitalização do gênero. A definição de mulheridade não é vaginal; a definição de masculinidade não é fálica. Pau de mulher e vulva de homem são configurações corporais que não se filiam ao temário da diverCISdade: somos pessoas gênero-desobedientes. E, no que se refere à teatralidade, toda sua história cispatriarcal é convocada aqui a reinventar-se de trans pra frente: do TEATRO para a TEATRA.
Teatra Décima de Almeida veste Prada, bairro Nhaiiii Bibi. Um letreiro com a inscrição TRAVESTI está em cena ao longo de toda a peça e vai mudando de cor conforme a sucessão de lances do texto. A travesti em cena está no alvo de 16 refletores do tipo elipsoidal. A provocação é nítida: o olhar sobre a corpa trans. Quem nos olha? As travestis no público olham a cena. Eu sou uma das travestis do público. A iluminação de Manifesto Transpofágico nos remete diretamente às discussões do meu livro LUZVESTI: iluminação cênica, corpomídia e desobediências de gênero, publicado em 2018 pela Editora Devires, de Salvador/BA. A força lírica da expressão das transgeneridades a partir do potencial performativo da luz ganha na peça algumas incursões experimentais que assinalam a violência do olhar cis sobre nós. Um dos aspectos é o próprio formato do elipsoidal que, sendo um refletor de comprimento de aproximadamente 60 cm dá a sensação de um canhão que atira luz sobre o corpo trans. Diferentemente do que se costuma ver em obras teatrais com o canhão seguidor, aqui os elipsoidais estão em tripés, um deles inclusive colocado no corredor entre cadeiras do público. Em Manifesto Transpofágico a recepção social ao corpo trans é expressa pela luz cênica e um recurso certeiro que se utiliza é exatamente o ajuste fino do refletor que segmenta a visualidade cênica da carne do corpo. Outro recurso é o acender de luzes dos corredores laterais em um momento em que Renata alerta: se você sente instabilidade, desconforto ou perigo de estar diante de um corpo trans, você pode se retirar do teatro.
Na teatra, fazer um manifesto é ter a mão na testa: limpar o suor, segurar-se no contexto de cansaço que a cisnormatividade nos esmaga e, apesar dela, criar-se em cena. Os mecanismos de objetificação e consumo nos quais as transgeneridades se inserem no contexto social nos fazem perceber que nossas teatralidades não hegemônicas gritam: ser transpofágica é também parar de ser trans pros frágeis, os cis.
Uma testa que não tem cara em cena. No início da peça o rosto está fora do corte do facho de luz, o texto é expresso da sombra. Se o corpo da travesti sempre chega antes, qual o desconforto causado de se escutar uma travesti sem rosto? Renata, que tem sido amplamente mira de ódio e de censura por sua obra teatral O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu, traz em Manifesto Transpofágico uma nova provocação: “o meu rosto não será necessário aqui hoje”. As perseguições pelas quais vem passando em nada são, ou deveriam ser, questões individuais dela ou de seu trabalho teatral. Ela nos traz verdades sobre a história de qualquer ente. A travaturgia é sim uma elaboração em primeira pessoa que desestabiliza o modelo dramatúrgico tradicional de contar histórias de vidas alheias. Um dos trunfos deste percurso está exatamente na profissão que Renata vem nomeando como transpologia: romper com a antropologia clássica que estimula, ainda hoje, processos de apropriação epistêmicos lamentáveis com pessoas cis pesquisando e se beneficiando da história de vida de pessoas trans e, semelhantemente, que pessoas brancas ganhem títulos, prêmios e cargos por suas pesquisas sobre pessoas negras. A transpologia não é a derrocada da alteridade, mas sim sua exponenciação: na medida em que uma pessoa trans pode conhecer-se em profundidade, ela conhece muito melhor e pode ter empatia sobre a condição naturalizada do que é ser cis. A recíproca é verdadeira?
Oswald de Andrade é emblematicamente uma referência nevrálgica da antropofagia brasileira do século XX. Vimos em diversas produções artísticas de então as tentativas modernas de “alimentar-se” de referenciais hegemônicos em processos de contra-cultura. Um dos limites deste projeto foi certamente a reincidência do sucumbir à norma como inevitabilidade da arte. Já a transpofagia do XXI, diante dos nossos olhos, é anticolonial e difere da antropofagia modernista por não pretender apenas o inverso da apropriação cultural: almejamos romper com a norma.
Manoel de Barros disse uma vez que é preciso transver o mundo. De fato, vejo muitos homens cis CIStando este verso. Enchem a boca ao usar o radical trans e colocá-lo na frente de palavras com as quais não combinam como disciplina (ser trans não é ser transdiciplinar, é um ato indisciplinar). A pergunta que fazemos às cis é: pode-se transver o mundo sem transver o próprio gênero?
A cisgeneridade não está acostumada a ser confrontada e acha que sabe tudo sobre nós. E não apenas desrespeitando o gênero de pessoas trans, precisando se explicar o tempo todo sobre suas dificuldades em respeitar-nos. Se o feminismo norte-americano criou o termo MANSPLANNING para se referir aos momentos em que um homem cis toma as dores de explicar o que uma mulher cis supostamente não se fez entender, criamos o termo CISPLICAÇÃO para referir-mos a todo este desastre cínico da cisgeneridade em cisplicar sobre os desrespeitos às pessoas trans. Este é o contexto da luta trans atual que Renata Carvalho tem conseguido traduzir para a linguagem teatral neste Manifesto Transpofágico, bem como em seus outros trabalhos anteriores. Neste, a parceria com Lubi do Grupo XIX de Teatro, é trazida em jogo como pretexto pra falar em ironia sobre uma pessoa cis dirigindo uma pessoa trans em cena: a discussão e o fórum sobre tirar a calcinha ou não como ato final tem um contexto histórico de toda a abjeção que o corpo travesti representa no imaginário brasileiro reforçada pela especulação midiática de programas de televisão dos anos 1980 e 1990. Como o corpo cis reagiria se estivesse neste lugar? Será que nos momentos de improviso Renata quererá quebrar o protocolo e colocar o corpo do seu diretor teatral na berlinda também para o público decidir se ele deve tirar ou não sua calcinha ou cueca? Aliás, queríamos muito ver no futuro Renata ser dirigida por uma pessoa trans e tendo uma obra com a assinatura de uma iluminadora travesti.
Não podemos deixar de dizer que esta é a primeira edição da MITsp em que uma travesti estréia na mostra de espetáculos, Renata Carvalho; que outra travesti atua na produção/logística do encontro, Marina Matheus; e outra, ainda, compõe o quadro de pessoas que elaboram a crítica teatral das apresentações: eu.
Estamos aqui, vivas, fazendo a história da teatra acontecer. Muitas mais virão. Uma delas pode ser você!