Mãe não tem limite. É tempo sem hora
Crítica do espetáculo Partir com Beleza
Por Soraya Martins
Assim como O Alicerce das Vertigens e Democracia, peças que também integram a 6ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo, Partir com Beleza leva para cena uma dimensão política do mundo, não a dimensão crítico-reflexiva das guerras, ditaduras, dos silenciados pelos processos coloniais. O ator marroquino, Mohamed El Khatib, reivindica poder falar de amor, do seu amor de filho, a partir não do luto, como coloca já de início, mas da dor, do sentimento de abandono após a morte de sua mãe. Isso também é política.
O cenário para a (re)elaboração) dessa perda/abandono, é a Casa do Povo, numa sala grande que não lembra em nada o ambiente frio e pouco acolhedor dos grandes teatros. Simplesmente uma sala, sem refletores, com uma luz amarela acessa durante todo o tempo da performance, uma televisão. O corpo do ator-narrador-filho e os corpos dos poucos espectadores, numa sessão íntima, é o suficiente para estabelecer o jogo, ao mesmo tempo de tensão e curiosidade, de fala e escuta. E ele fala. Fala sobre as últimas conversas que teve com a mãe, as leituras tecidas para mantê-la viva, o processo burocrático de repatriação de um corpo imigrante na França e a tensão, sempre no gerúndio, de vê-la partindo…
Play. Liga a televisão e avisa aos espectadores que gravou os últimos dias da mãe no hospital. Não era hepatite. Câncer no fígado. E a necessidade e o desejo de registrar a mãe. No vídeo, o preto da tela e o branco da legenda em francês. E o jogo: ao mesmo tempo em que propõe dividir a sua dimensão mais íntima, definida como o superlativo do “dentro”, o interior do interior, o nível mais profundo do eu, Mohamed guarda a mãe só para si. E é justo.
El Khatib faz do seu teatro íntimo um golpe de força. O discurso na primeira pessoa, os diários íntimos, a cópia da certidão de óbito da mãe e de sua própria certidão de nascimento (entregues aos espectadores), o relato pessoal e a confissão não relegam às margens toda a expressão motivada pela interioridade. O seu teatro evolui não “no mundo dos outros”. Há uma legitimação do “interior do interior” como objeto de presentação. Talvez uma espécie de teatro documentário do indivíduo, que repousa na tensão dialética de elementos fragmentários extraídos diretamente da realidade pulsante e não aspira reproduzir exatamente um fragmento do real, mas a submeter os acontecimentos a uma (re)elaboração, que em Partir com Beleza diz da (re) invenção da dor em ato estético-performativo.
“A morte não dá força, fragiliza”. Como deve ser perceber a mãe como um “corpo estranho, morto, moribundo”? A fragilidade partilhada a partir do desnudamento do discurso interior do indivíduo, do silêncio, do mais recôndito, do não dito, do irrepresentável, que são também escolhas estéticas- performativas.
Como dar a ver o interior da cena? Que espaço deixará penetrar o olhar sobre o palco, dentro da casa, no interior dos pensamentos, ou ainda do inconsciente de um sujeito?
Da tela preta com o branco da legenda em francês, dá-se a ver o “corpo estranho-morto-moribundo” da mãe, segundos contados nos dedos. Não é esse corpo que Mohamed El Khatib quer que os olhos dos espectadores enxerguem.
“Tem de saber que estão aqui para morrer.” E na parede branca, da Casa do Povo, a projeção da foto da mãe viva. A dimensão íntima fragilizada mostrada na sua força. Afirmar a força dessa fragilidade reelaborada – a imagem da mãe viva, mecanismo produtor de imagens para o pensamento – é afirmar que, no nosso modo de imaginar, como coloca Didi-Huberman, jaz fundamentalmente uma condição para o nosso modo de fazer política.