Luz à sombra do som
Crítica do espetáculo Altamira 2042
Por Dodi Leal
Até que ponto o discurso desenvolvimentista é capaz de chegar para manter o abastecimento elétrico de um país? Em Altamira 2042, Gabriela Carneiro da Cunha compartilha conosco inquietações sobre como a soberba humana sobre a terra tem substituído animais por equipamentos, rio por rua, paz por urbanismo. O desastre tem nome: usina hidrelétrica de Belo Monte; a chacina podia ter muito bem inspirado uma obra de artes cênicas, mas efetivamente estamos diante de uma obra de artes cínicas.
Se o Rio Xingu pudesse falar, ele choraria. Mas como o rio é co-diretor da peça, ele nos diz: eu sou o Muro de Berlin do Brasil. De fato, ser canal artístico de povos indígenas amazônicos expandindo a comunicação a outros cantos do país deveria caminhar mesmo no sentido de nos entregar a fatura desta conta cara de se pagar. Os custos sociais e ambientais não cabem num espetáculo teatral convencional. Os dados que aterrorizam são subterrâneos à cena e a faz explodir: 10 mil famílias despejadas de suas terras, 16 toneladas de peixes mortas/os, alagamentos, falta de saneamento básico levando ao represamento de esgoto.
A experimentação cênica, traduzida ao público em forma de instalação sonora, tem uma gramática de luz indissociável. Aí vemos nitidamente a presentificação da colaboração de Gabriela com Cibele Forjaz, que assina a iluminação cênica de Altamira 2042. Uma dezena de caixinhas de som espalhadas por uma das salas do efervescente Centro de Referência da Dança da Cidade de São Paulo nos lança, quase que sem deixar dúvidas, ao próprio Pará. A musicalidade eletrônica produzida na região tem nas cores acesas do neon projetadas pelas caixinhas o correspondente que, na peça, poderíamos então nomear de luz brega. Mas são as ações performativas nas quais se marca mais a relação entre a sonoplastia e a iluminação. Uma cabeça de luz formada por duas caixinhas de som reluzentes, em um momento, e um projetor na altura dos olhos, em outro momento (ambos encaixados na cabeça da intérprete como um cocar eletrônico), nos fazem lembrar se não era mesmo o pós-humano o resultado final almejado pela modernidade de máquinas. O corpo ciborgue indígena, no entanto, aos olhos do povo branco, é alienígena. Apesar de o OVNI ser a Usina de Belo Monte (segundo grande parte da população local a construção gigante apareceu do céu sem explicação), a brasilidade progressiana vê seus povos indígenas como aliendígenas. E é assim que se tematiza o Muro de Xingu na peça, a guerra entre duas mitologias: progressianos Vs. aliendígenas.
A luz à sombra do som é o próprio Rio Xingu. A força da peça está nas vozes da Amazônia, mas também está nos lampejos que se manifestam no interior do som, como se o som fosse feito de sombras. Um sensor é o captador de áudio; uma programação computacional transforma os estímulos de som em vibrações de luz que rasgam o chão por meio de fitas de LED. O canto humano faz o rio falar na linguagem da luz cênica. Note-se que o comando vocal indutor da iluminação da terra era dado dentro de uma estrutura metálica cujos braços armados manipulam um teclado e os olhos projetam o rio na parede. Enquanto isso, as cores do rio no chão são variadas, mas, antes deste trecho, as mesmas fitas de LED estavam enroladas em círculo e produziam uma cor única: o vermelho. Era uma grande cobra que se introduzia e se intraduzia com sua existência ameaçada.
A peça nos alerta que, de um lado do muro está a mitologia que cria desertos, e do outro lado a que cria Amazônias. A edição da trilha sonora e o posicionamento das caixinhas de som, sempre em deslocamento, fazem a projeção de som/luz e de som(bras) alternarem entre o interior de uma roda e o exterior. A intensificação dos sons de urbanidade invadindo a mata e o imaginário dos povos indígenas se contrapõe a uma única fonte emissora de som que, resiliente, mantém a projeção das vozes da floresta. O mesmo acontece com uma vela que teima em ficar acesa em meio a tanta luz elétrica.
Aí somos confrontadas com uma provocação decisiva: Ser e ser, esta é a questão. Ora, é possível amazonizar o mundo dentro deste modelo genocida de servidão onde quem paga a conta efetivamente é a própria Amazônia? O rio tem vida e agora o rio está louco. A urbanidade enlouqueceu o rio que já não sabe mais quem é. Ser e ser. Ser é ser? Buscar nossa ancestralidade para além do paradigma do reprodutivismo cisnormativo da espécie é encontrar pistas da nossa transcestralidade. Em cena vemos um caminho aludido às linhagens que nos habitam e àquelas que nos transformam. A alteração da funcionalidade dos equipamentos eletrônicos a partir de manuseios percussivos nos faz lembrar que transicionar gênero em batucada é uma maneira de provocar a norma de pixels que constituem a digitalidade do corpo urbano. Lembremos bem que o projeto que inoxidou, metalizou e concretou a humanidade é cisnormativo e branco. Há luz à sombra do som, há trans à sombra do cis.
Quais seres importam ao crescimento brasileiro? O IBGE apontou em 2013 que, em 2042, a população brasileira deixará de crescer. A questão aqui não é se haverá mundo até lá, se o fim do mundo acontecerá quando acabarem os recursos naturais que abastecem o capitaliCISmo. Como nos diz Ailton Krenak sobre a invasão portuguesa cisbranca no Brasil: “Para os povos que receberam aquela visita e morreram, o fim do mundo foi no século XVI”.