Experiência contra a pressa e o embotamento da percepção na megalópole
Crítica de (ver[ ]ter) à deriva
Por Ivana Moura
A cidade que pulsa inquieta e febril – como seus motoristas nervosos e seus caminhantes submersos em pensamentos (in)decifráveis – tem sua paisagem constantemente modificada. A memória dessa São Paulo recriada cotidianamente no espaço urbano, aberta a percepções, saturada de imagens e de sons, é convocada para outras vivências pela cia Les Commediens Tropicales. Uma das ruas mais frenéticas do mundo foi chamada a diminuir seus ímpetos de velocidade. Durante três dias (de 21 a 23 de março, às 15h), o trecho da Avenida Paulista que fica em frente ao Parque Trianon foi invadido pela performance (ver[ ]ter) à deriva, dentro da programação da MITsp. Por uma horinha, essa trupe embosca carros e ônibus, desafia o tempo.
Sem fábula manifesta nem conexão direta entre as cenas, (ver[ ]ter) ostenta um caráter intervencionista. O elenco traça sua escrita imagética, com a valorização de detalhes, gestos, acendimentos. Em parceria com o quarteto musical À Deriva (Beto Sporleder, Daniel Muller, Guilherme Marques e Rui Barossi), Les Commediens investem na potência poética da performação em espaços públicos.
As ações foram erguidas a partir das obras do artista-secreto-britânico Banksy. (ver[ ]ter) à deriva também buscou fôlego no questionamento edipiano “para que ver, se já não poderia ver mais nada que fosse agradável a meus olhos?”. O grupo assina coletivamente a dramaturgia e a direção desse projeto que contou com disparadores cênicos do Coletivo Bruto e das artistas Georgette Fadel, Tica Lemos e Andréia Yonashiro.
O trabalho estreou em 2011, e desde então foi apresentado em vários festivais, fez temporada na Avenida Paulista em 2014, e ocupou outros lugares da cidade como Centro Cultural São Paulo, Oficina Cultural Oswald de Andrade, Estação da Luz, Largo da Batata, Largo da Penha, Terminal Barra Funda, Campo Limpo.
Sensações
Em (ver[ ]ter) à deriva, os estímulos urbanos funcionam como elementos articuladores entre artistas e transeuntes, forjando sensações desse corpo perceptivo e a metrópole na qual estão imersos.
Com cartazes ostentando frases de efeito: “Faça sexo não veja novela”; “Zero % interessado em pessoas”; “Essa é só minha opinião”, o grupo carregou de outros sentidos essa experiência contra a pressa e o embotamento da percepção que marca as grandes cidades. Uma poesia prosaica e alegórica com capacidade de atravessar essa gente “em trânsito”.
A obra dialoga com as imagens expostas numa metrópole, e congrega diversas produções artísticas. As atuações cênicas, musicais, plásticas ocuparam a avenida Paulista, a calçada do Trianon, o vão do Masp. O trabalho propõe-se a fazer pequenas fissuras nesse espaço urbano hierarquizado entre espetaculoso e mercantil, que orienta a cognição dos transeuntes da cidade grande, sua visão e sensações.
Dinâmica perceptivo-corpórea
Música romântica e o elenco (Carlos Canhameiro, Daniel Gonzalez, Michele Navarro, Paula Mirhan, Rodrigo Bianchini e Tetembua Dandara) protagoniza o beijaço para marcar o início dessa viagem. Ósculo vale tudo, entre clima de novela e afronta aos caretas. Homem com homem, mulher com mulher, homem com mulher. Beijaço que merece esse nome.
Caminhamos mais um pouco e a voz de Maria Callas dá o tom para a sequência de movimentos do elenco. Depois dessa estação mais melancólica, é a vez de ocupar o asfalto. E eles se deslocam da calçada para a via da avenida Paulista para dançar com / entre os carros.
Vestidos esvoaçantes, chapéus, sorvetes e bossa nova. Eu ganhei um sorvete, estava bom. Cenas, quadros. Outro, ao som de Malandragem, na voz de Cássia Eller, incendeia imagens de uma mulher-bomba. Por derradeiro, Anjos com Asas observam, e protegem, a cidade, do parapeito do vão do Masp, e os quadros se dissolvem em meio a outras cenas do teatro do real. No segundo dia, no mesmo local, ativistas e manifestantes se aglomeravam no território do Masp para um protesto contra a Reforma da Previdência.
(ver[ ]ter) à deriva é uma intervenção de risco, principalmente quando os atores e músicos se imiscuem entre os carros, ônibus e motos, em gestos desafiadores, bailados, posições. Eles se espremem no trânsito da Paulista, pegam carona nos veículos, são incentivados ou destratados. É construída uma teia coletiva com essas frações de experiências.
Mesmo que provisoriamente, a cia Les Commediens Tropicales ressignificou o traçado urbano. Essa experiência foi transpassada por sensações e impressões lançadas ao transeunte, transbordando de corpo no espaço, em trajeto multissensorial.
Do mosaico com possibilidade de inúmeros encaixes, cada espectador compõe sua montagem de impressão, a partir da articulação entre as cenas. Essa porosidade carrega força táctil e visual, com as imagens captadas.
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