É Mágica de Verdade
Crítica ao espetáculo do grupo Forced Entertainment
Por Ana Bernstein
Segundo Einstein, “a definição de insanidade é fazer a mesma coisa repetidamente, mas esperando obter resultados diferentes”. A frase descreve, de forma sucinta, o espetáculo Mágica de Verdade, do grupo inglês Forced Entertainment. Três atores participam de um game-show, um desses programas de televisão, em que um dos participantes, de olhos vendados, deve adivinhar a palavra que um outro está pensando. A situação é simples, embora absurda: “Ok, vai ser assim…”, diz o apresentador, explicando que tudo o que o participante tem que fazer é adivinhar a palavra certa. A palavra escolhida é mostrada em um cartaz de papelão para o público e se alterna entre “caravana”, “algebra” e “linguiça”. Ao som de risadas e aplausos pré-gravados típicos de programas supostamente realizados “ao vivo”, o adivinhador, desde já fadado ao fracasso, tem três chances para acertar a palavra exata dentre todas as palavras da língua inglesa. A tensão se acumula na expectativa das respostas, sempre erradas, dando lugar ao desapontamento e ao reinício do jogo, que se repete exaustivamente, com os atores revezando-se nos papéis de apresentador, adivinhador e pensador.
O espectador, incrédulo, aos poucos se dá conta de que a encenação de fato se resume à repetição da mesma situação ao longo dos 100 minutos do espetáculo. De início, espera-se que, em algum momento, as respostas mudem e a cena siga outras direções. Mas as mesmas respostas — eletricidade, furo e dinheiro -, repetem-se invariavelmente, e sabedores disso, num estranho giro, passamos a esperar por elas, e mesmo a contar com elas. O humor do trabalho surge, de fato, da sucessão de fracassos, dos incessantes recomeços de uma situação destinada ao malogro. Trata-se, nas palavras de Beckett, de “fracassar… fracassar de novo… fracassar melhor”. A repetição, entretanto, traz consigo a diferença. A situação inicial é gradualmente desconstruída, os ritmos acelerados ou retardados, enquanto os atores, vestidos a maior parte do tempo de galinhas, tiram e recolocam seus figurinos de modo frenético, reforçando o nonsense da cena. Diferentemente do teatro tradicional, em Mágica de Verdade não há uma narrativa que evolui ao longo do espetáculo, um texto a ser interpretado. O grupo trabalha, desde seu início em meados dos anos 80, com espetáculos construídos a partir de improvisações em ensaios, utilizando materiais da cultura pop como TV, música e cinema, e misturando linguagens artísticas diversas.
Estruturado como um jogo, Mágica de Verdade, busca explodir a estrutura mesma do jogo, explorar e forçar seus limites, ver até onde é possível levá-lo, descobrir seus pontos de ruptura. Repetida diferentemente, ao som de tambores de circo, relógios que marcam o tempo das respostas, ou ao som de violinos, a situação adquire tons e sentidos diversos, por vezes sutilmente políticos, como por exemplo quando a resposta dada é furo (hole, em inglês) e o apresentador busca clarificar a palavra (em contraposição à whole, que soa igual mas possui outro significado) por meio de exemplos, como furo na camada de ozônio ou furo de bala. Ou quando a palavra é dinheiro e os exemplos referem-se a dinheiro sujo, lavagem de dinheiro, dinheiro de petróleo ou dinheiro de impostos. Ou ainda quando a única atriz é constantemente impedida de falar pelo apresentador, que repete vigorosamente que ela deve pensar antes de falar, calando-a como acontece de fato com tantas mulheres no dia a dia de uma sociedade machista e patriarcal. Quando ela afinal pode dar sua resposta — errada, claro —, ele a acusa violentamente de não ter pensado.
O humor deriva também em grande parte da comédia física levada ao extremo pelos excelentes atores: da ininterrupta troca de figurinos, das danças ao mesmo tempo patéticas e cômicas que executam vestidos de galinhas, da repetição de certos gestos, da troca frenética de papeis (embora não haja personagens e os atores usem seus próprios nomes), da velocidade das cenas, além da desconstrução, fragmentação e inversões que realizam com o texto. A simplicidade do cenário (um simples retângulo de grama artificial, duas cadeiras e um microfone, iluminado por um círculo de tubos de luzes verticais posicionados ao fundo e que lembram os trabalhos de Dan Flavin), dos adereços (cartazes de papelão ordinário) e dos figurinos reforça a teatralidade da cena, deixando claro para o público a despreocupação com qualquer ilusão. A verdadeira mágica não consiste em iludir o público, muito pelo contrário. Aprisionado num ciclo de repetição (que em outras mãos poderia se tornar um pesadelo), o público se surpreende e vibra, como raras vezes vemos no teatro, com as inúmeras possibilidades cênicas geradas pelo insucesso do jogo, pela repetição e diferença, pela exaustão e colapso da situação, por uma performance cujo sucesso deriva do fato de ser arquitetada, pura e simplesmente, sobre o fracasso.