A desobediência do quadril
Crítica do espetáculo Cria
Por Deise de Brito
O que podem fazer os quadris? Dez intérpretes da Cia Suave responderam isso sábado. E movendo a vida em corpo por estilos que atravessam o funk, passinho, danças urbanas, dança afro e procedimentos de dança contemporânea, o grupo reatualiza a (re) existência no palco. São desencaixes, encaixes, torções, dobras, pulos, passos ligeiros, pés em constante diálogo. Dispositivos de dança contra hegemônicos que são levados ao palco convencional provocando sua estrutura.
A presença do espetáculo Cria é simbólica nessa 6º edição da MITsp, pois traz à cena realidades dançantes gestadas em comunidades negro-diaspóricas e periféricas. São compreensões em dança que se fundamentam em outros modos de pensar o corpo e movimento. Nessa compreensão de corpo, xs 10 dançarinxs pretxs (re) afirmam aspectos comuns encontrados em danças de matrizes africanizadas e potencializam o quadril, lugar ameaçado e odiado pelas obediências coloniais. Num festival que tem a descolonização da cena como uma de suas pautas, a apresentação de Cria se revela em uma presença primordial para verticalizarmos a discussão acerca do fazer e dizer nas Artes Cênicas.
Para além da estética inteligente e desobediente, Cria e suas crias nos ensinam como escutar e garantir presenças no palco. São jovens negrxs apresentando múltiplas possibilidades de ser corpo, de ser pessoa, problematizando as regras sociais que nos enquadram em maneiras únicas de ser gente.
Tenho desconforto em relação à construção coreográfica do trabalho, suas escolhas espaciais e desenhos. Parece-me que a sofisticação dos movimentos e a alta qualidade técnica do elenco necessitam de um pensamento coreográfico que seja consoante com as formas de dizer o mundo, ali apresentadas. O funk e o passinho foram/são semeados construindo suas próprias pedagogias, diferentes daquelas encontradas nos circuitos dominantes, que fixam modos de aprender e fazer dança. A liberdade, a sincopação e as dinâmicas do “estar das/em bundas” presentes no funk, por exemplo, exigem um olhar, por parte da direção, que corresponda a uma pedagogia coreográfica negra e diaspórica. Nesse sentido, infelizmente, a direção de Alice Ripoll deixa a desejar.
No entanto, como pontuei anteriormente, há um alto nível de qualidade nas pessoas que dançam Cria e suas presenças garantem o prazer em assistir ao trabalho. E mais significativas são as provocações educativas que acontecem antes, durante e após o espetáculo. No final do diálogo entre público e artistas, pós apresentação da coreografia, foi ressaltado que Cria traz em seu elenco a primeira intérprete TRANS preta desta edição da MITsp. Essa ressalva histórica e essencial foi realizada por Marina Matheus, mulher TRANS que estava na plateia e que fez parte da equipe de trabalho da MITsp 2019. De forma assertiva, ela nos chamou atenção para a importância de enfatizar a presença da intérprete. É assim que acontece o processo de aprendizagem decolonial. Pessoas lembram aquelxs que esquecem e quando somos lembradxs do que/de quem esquecemos, é preciso instaurar a necessidade de (re) inventar o respeito em ações.
Numa sociedade perversa que produz projetos genocidas para as populações indígenas, negras e LGBT´s, quem dança Cria manda o recado da (re)existência através da desobediência do quadril. Somos muitxs e não aceitamos o genocídio. Se as técnicas para nos matar continuam a serem desenvolvidas, seguiremos reinventando técnicas de viver.