A banalidade do bem
Crítica do espetáculo A Repetição. História(s) do Teatro (I)
Por Juliano Gomes
O teatro de Milo Rau se apoia no cruzamento entre a escolha de assuntos moralmente extremos (assassinatos bárbaros, genocídios) e uma meta-abordagem analítica que almeja funcionar como força de contraponto à possibilidade de exploração imoral dos acontecimentos abordados. Portanto, produz-se sempre um território movediço – onde uma sombra de exploração sádica ou fetichista sempre se avizinha – cuja aposta repousa num dissecamento frio dos acontecimentos, onde o que ganha relevo é justamente o esmero técnico destas táticas de reconstrução.
O primeiro terço de A Repetição. História(s) do Teatro (I) é dedicado a comentários sobre o pacto teatral (“como entrar num personagem?” diz o ator, falando conosco diretamente) e a uma longa cena de uma audição que se torna a base espacial e conceitual da exploração do assassinato real de um jovem homossexual na Bélgica. Ao final, retornamos aos comentários diretos sobre a representação teatral – materializados no signo da fumaça cênica – e a uma gag moral que é abordada também no meio da montagem. Alude-se e encena-se o episódio de um ator que diante da plateia simula uma situação de enforcamento, com uma corda pendurada no teto e uma cadeira. E essa configuração serve a imagem final do espetáculo: o ator vai se enforcar, o público irá assistir ou alguém irá se levantar e salvá-lo? Uma pequena fábula retórica sobre o velho dilema do “espectador ativo” e um suposto sadismo que essa posição de imobilidade e contemplação engendraria.
A moldura narrativa do espetáculo suíço conduz a hipótese de que o que realmente se deseja ali é estudar as possibilidades de representação. Convenções do cinema atravessam toda a peça, que conta com um hábil cinegrafista no palco, e essas acentuam investimento nas camadas e formas de se mostrar um acontecimento, e do ruído e alteração inerente a toda reencenação. Um carro idêntico ao carro real do crime entra em cena. Elenco conversou com as pessoas reais ligadas ao acontecimento, foi ao julgamento e conheceu os parentes. Em um momento-chave, uma atriz explica ao outro ator como encenar tapas, socos e agressões, como fazê-los parecerem reais. Isso fornece um hábil álibi para que a peça explore graficamente a agressão sofrida pelo personagem que é espancado até morrer. Minutos depois do “workshop de agressão cênica”, vemos a agressão cênica. O que se deseja é trabalhar o contato da consciência do artifício pelo público com a encenação deliberada da violência – que, sem esse suplemento didático sobre a representação, soaria somente perversa. A introdução intelectual do procedimento produz um colchão moral que ampara a presença da brutalidade gratuita no palco.
Mas à que essa combinação entre exploração sensacionalista e desconstrução semiótica conduz? Qual é a alteração sensível que se opera seja nas convenções teatrais e/ou na arquitetura moral do acontecimento extremo?
Não por acaso, o nome da peça é A Repetição. História(s) do Teatro (I). “Repetição” significa, em várias línguas, ensaio, no sentido teatral. Milo Rau está interessado em explorar as dinâmicas de duplicação e desdobramentos dos signos. Mas por que seria então interessante um acontecimento extremo, um homicídio de motivação homofóbica, para servir de matéria a esse estudo?
Na arte ocidental, pelo menos há 50 anos, o humanismo (ou sua performance) é uma mercadoria vital na ligação entre as artes e as instituições de fomento e financiamento. Na medida em que o capitalismo necropolítico avança, o vago tema da “violência” (que elegeu o atual presidente brasileiro) se torna um bem de cada vez mais valor. Supostamente abordá-la de uma maneira matizada é o que as instituições, de uma maneira geral, mais desejam, no sentido de justificar sua missão de justiça social. Aí está a função primordial da inserção das hashtags #homofobia #desemprego #imigração na peça. Uma espécie de adequação a uma agenda institucional humanista que fornece o álibi perfeito para uma investigação formal, que despida de sua superfície de “relevância”, desembocaria num exercício de desconstrução teatral possivelmente interessante, porém ameaçado por uma impressão de uma inutilidade perante a crença de utilidade imediata da arte, dessa fé literal e ansiosa do “mudar o mundo”. Suponho que seria, no mínimo, mais difícil conseguir financiamentos ou tão ampla circulação e repercussão. Portanto: que valor de fato se produz aqui?