As expressões do invisível
Crítica do espetáculo Altíssimo
Por Paloma Franca Amorim
Altíssimo, espetáculo concebido pelo ator Pedro Vilela, trata fundamentalmente da relação entre a fé e o capital através de uma dinâmica de fragmentos que se apresentam num primeiro momento de forma caótica, constituindo uma linguagem cênica acionada por dispositivos de ruptura da linearidade e da relação lógica entre causa e efeito, para atingir um patamar de significado pelas vias da justaposição de referências, aglutinação de informações e pontos de vista.
Essa trajetória cria espaços lacunares, vãos interessantes, para que os espectadores configurem sua leitura autoral sobre o tema da transformação do sagrado em mercadoria e suas ressonâncias no Brasil contemporâneo que faz tempo padece do desmonte de sua laicidade e liberdade de expressão em espaços institucionais como escolas, tribunais de justiça, parlamentos. O espetáculo nos apresenta uma estrutura de santíssima trindade crítica: o capital, a fé e a institucionalização da fé atrelada especificamente à prática do neopentecostalismo.
Qual moldasse uma imensa estrada de trilhos diferentes e contrastivos, Vilela nos conduz à tese política preconizada por Max Weber em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, obra referencial nos estudos históricos sobre a criação de um imaginário social capaz de financiar o regime econômico de exploração industrial da produtividade humana e animal associando-as ao lucro financeiro.
Nos primeiros movimentos de Altíssimo percebemos o discurso acerca da frustração e angústia do indivíduo moderno, esse que somos nós, em face da desesperada e profunda consciência a respeito da própria solidão. Questionar uma força divina que ao longo de tantos séculos foi a explicação possível para a presença de vida na terra resulta em um embate existencial profundo que resvala em uma postura niilista sobre o mundo e as relações. Dissolvida a sensação de comunidade eucarística partilhada culturalmente no ocidente no período medieval, o que resta ao sujeito é enxergar-se diante do espelho, no topo da superfície narcísica de si, embebido de inquietude sobre o sentido do viver e do morrer.
Num fluxo verborrágico paradoxalmente preciso, esse homem que Vilela interpreta – já não sabemos se trata-se de uma persona ficcional ou se dele mesmo em processo particularizado de estudo sobre a compreensão da própria fé – salta para o debate sobre as influências religiosas no ambiente público, tecendo uma crítica contundente à atribuição valorativa da religiosidade no território da matéria.
A encenação estruturada sobre dispositivos epicizantes confere uma formalização sóbria ao texto solo. Vilela transita entre elementos distribuídos no palco como microfones, o corpo de um cordeiro, uma tela onde é projetada uma canção gospel de videokê – momento de refinada ironia do espetáculo que, diga-se de passagem, trata com muito discernimento ético o debate sobre as crenças individuais, sem incursões em um autoritarismo moral, farsesco ou violento.
Vilela afirma a todo instante, utilizando métodos que oscilam entre a teatralidade e a fala direta atrelada ao desempenho real do discurso, que Altíssimo é um ponto de vista, um golpe do olhar sobre a experiência do culto, do rito e das suas formas modernas de mercantilização cuja sentença final se manifesta na exploração do contato entre as pessoas ou as comunidades e suas entidades, rituais e expressões do invisível.
O espetáculo que estreou em 2017 já teve algumas versões e parece estar chegando em sua síntese essencial, porque se apresenta viva em cena a estratégia da busca pela melhor palavra, melhor ação, melhor condição de manipulação do conteúdo político jamais como retórica vazia, e sim como calorosa vivência estética.