Artimanhas do poder
Crítica do espetáculo Lobo
Por Paloma Franca Amorim
Para escrever sobre Lobo, espetáculo de Carolina Bianchi, eu tive que tentar dormir tranquilamente e esperar que a força do meu subconsciente pudesse me apresentar chaves interessantes de abordagem, referências e conceituações para produzir uma reflexão minimamente justa para o leitor. Não por causa do espetáculo que tem imagens fortes e interessantes, mas porque ao assisti-lo eu estava muito cansada, desgastada mental e fisicamente pelas tarefas diárias. O horário de apresentação, onze da noite, no Teatro de Contêiner, parece ser inviável para o espectador que realiza uma jornada popular de trabalho. Inclusive, esse não é o meu caso, também tenho minhas vantagens sociais no mundo da exploração material, mas é o caso do público que não frequenta a Mostra Internacional de Teatro – o curioso é que esse público trabalhador está ausente ainda que haja espetáculos em horários mais generosos com o corpo e a disponibilidade à fruição intelectual.
Essa deverá ser uma pista para que possamos compreender juntos por que aquele homem, acostumado a ir assistir as peças do Teatro de Contêiner, morador de rua da região da Luz, decidiu sair ainda nos primeiros trinta minutos de espetáculo, justo no auge da relação entre dezenas de corpos masculinos nus, molhados de suor, excitados em um embolamento homoerótico muito forte e que, de certa maneira, prepara com vigor o público para o advento do segundo momento, a presença de uma única mulher ordenando tudo, com o poder nas mãos, desdobramento que infelizmente não se constitui como reviravolta discursiva.
Talvez, por estarmos falando de poder, o morador de rua tenha saído do espetáculo. É possível reduzir sua postura como a expressão de um moralismo de raízes profundamente fincadas no patriarcalismo estrutural e celebrar que o espetáculo expulsou mais um macho do espaço de convívio pretensamente seguro para as mulheres. Mas é isso que queremos enquanto mulheres? E mais: a quais mulheres nos referimos? E quais os significados engendrados pela experiência da peça no que diz respeito ao debate de gênero em sua amplitude sóciopolítica para além dos muros das emancipações individuais?
Angela Davis nos diz no livro Gênero, Raça e Classe sobre a importância de intersecção entre esses elementos distintivos para produzir uma reflexão densa capaz de abarcar as complexidades das relações sociais, econômicas e raciais no mundo. Segundo Davis:
Raça é a maneira como a classe é vivida. Precisamos refletir bastante para perceber as intersecções entre raça, classe e gênero, de forma a perceber que entre essas categorias existem relações que são mútuas e outras que são cruzadas. Ninguém pode assumir a primazia de uma categoria sobre as outras.
Ao entrar em cena, a mulher, um lobo de acordo com a metáfora primeira da peça, chega munida de um par de armas e a exigência de que seu rebanho de corpos masculinos seja satisfatório na declamação da poesia Morri pela Beleza, de Emily Dickinson.
A mulher executa todos aqueles que não soam agradáveis, como num espelhamento de gênero que deflagra a banalização do feminicídio. Em seguida, outras imagens de inversão dos papéis dos homens e das mulheres cisgênero se apresentam, entretanto, a afirmação feminista parece entrar em colapso até o final do espetáculo.
A falsa simetria de poder gerencia uma idéia de que as respostas à matemática de opressão heteropatriarcal se manifestam com uma simples alteração de lugar de privilégios na pirâmide social, o que acaba cerceando a temática de gênero de suas extensões raciais e de classe. Essa atomização do debate, mesmo aquele que se dá no campo do simbólico, é sinal de tempos neoliberais em que até mesmo as pautas políticas se mercantilizam e servem ao projeto de bem estar individual ou de ordem privada que, lamentavelmente, acabam por alimentar a máquina que procuram combater. A discussão de gênero, sem correlação de raça e classe, oscila na corda bamba, perigando resumir-se a mais uma das inúmeras expressões de supremacia econômica branca que rege o imaginário brasileiro.
Em Lobo a tomada de poder individual se revela como um fim e não como meio, por isso esvanece. Será da arma dos homens que nós precisamos ou de uma outra forma de organização das relações sociais, políticas, estéticas? Uma forma que ainda desconhecemos, mas que já se anima no território do desejo, da luta e da avaliação dialética sobre o mundo. Um homem é um homem, um homem nunca é apenas um homem.