Acaso não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo?
Crítica do espetáculo Altíssimo
Por Juliano Gomes
Chegando na sala, ouvimos uma voz, com pausas robóticas de aplicativo, dizer trechos bíblicos com sotaque lusitano. Não somente um efeito cômico se deseja produzir aí mas também um jogo de distâncias. Se trata de sublinhar um “material ridículo” – para um público potencialmente não religioso – com outra camada de risibilidade. Mesmo tentando matizar tal perspectiva, o monólogo de Pedro Vilela não consegue erigir força de contraponto a esta posição perspectiva. Altíssimo nasce da constatação prévia da ilegitimidade do vínculo entre igrejas neopentecostais e práticas de maximização de lucro. O que daí sucede parece moralmente limitado pela atrofia imaginativa que se desdobra dessa posição.
Na variação enunciativa entre o lugar do pastor/fiel e o do cético, a performance tem dificuldades em produzir intensidade pela voz do algoz moral. O cume disso é quando ouvimos uma sessão de descarrego em áudio e um efeito reverso se produz. Diante de um tom da peça que alterna um naturalismo inseguro com um histrionismo corporal súbito, ouvir a performance vocal de um pastor real expõe os limites da encenação diante de nós. A imensa capacidade desvairada de manejo da intensidade vocal, que faz do culto uma performance bem sucedida, tanto musical quanto teatralmente, revela uma certa frieza cênica que, mesmo nas tentativas de catarse (uso de música alta, iluminação vermelha, um cordeiro morto, entre outros), amarra a fé expressiva do trabalho.
A sensação de superioridade moral de quem “saberia que essas igrejas são embustes que exploram as pessoas” impede que a movimentação perspectiva que a peça deseja (variando entre as posições da situação da performance religiosa) se concretize. Forma-se assim um pacto consensual num aparelho cultural elitizado. Não por acaso, o texto se utiliza constantemente de uma primeira pessoa do plural à princípio abstrata. Quem seria esse “nós”? Evidentemente, essa primeira pessoa se localiza ao redor de um ceticismo que é também um contorno de classe e um mergulho corajoso na ambigüidade deste que provavelmente é o maior fenômeno cultural e político do Brasil recente, o capitalismo neopentencostal e suas múltiplas e contraditórias dimensões, fica por fazer.
Qual a diferença entre uma grande igreja neopentecostal e um grande banco privado em termos de exploração econômica e atuação política? Aqui estamos assistindo, na casa de um, um estudo sobre o outro. Usando um tempo verbal que o texto da peça insiste: o quê o teatro poderia fazer diante dessas forças imensas? Toda exploração é plástica e estética. Funciona sempre por performances retóricas, arquitetônicas, musicais e visuais. A escolha por um estudo “negativo” – como na encenação de uma música que o artista faz no palco, à moda de um videokê – é exemplar de como o limite moral da investigação não permite que o trabalho de fato revele algo não previsto. A capacidade de amalgamar esteticamente elementos díspares, como na ilustração onde a letra do videokê se desenvolve – juntando Cristo em baixa opacidade, céu e mel – é somente uma das faces de um fenômeno cultural extremamente dinâmico, cujo “algoz”, que poderia chamar grosseiramente de “esquerda universitária”, não cessa de demonstrar sua escassez imaginativa para lidar com o que desenvolve diante de si.
Igualmente alinhados com a exploração em cena de elementos não ficcionais, tanto o “teatro evangélico” (a performance dos cultos), quanto a cultura do “stand up comedy” tem conseguido se desenvolver de maneira culturalmente mais viva que o “teatro documental oficial” que circula pelos festivais. Sua relação com a sociedade parece mais dinâmica, porosa e atenta as movimentações subjetivas do país. Uma hipótese para isso teria raiz na ligação entre classe, território e imaginação política. A certeza narcísica que a elite universitária tem de si mesma como fonte de iluminação e desalienação é a linha exata que a impede de revirar seus próprios procedimentos e de conceber sua ética mais como uma dança do que como uma estátua. A suposta autoimportância de desvendar os procedimentos de uma cultura da promessa através do dinheiro – aqui, dentro de um banco – estabelece um pacto de mestre (peça) e aprendiz (público) que acaba por limitar a experiência sensorial comunitária. O que se produz afinal, é também uma pregação – no sentido de uma verdade única de base – infelizmente mais “cinzenta e entendiante” que seu objeto de estudo.