Des-colônia
Crítica do espetáculo Colônia
Por Daniel Toledo
Um quadro negro que, se olharmos bem, talvez seja verde-escuro. Cavaletes de madeira e, sobre eles, um tampo do mesmo material. Atrás da mesa improvisada, uma cadeira vazia. Há também uma garrafa cheia de água e uma xícara cheio de ar. Um corpo humano rompe a cena. Está vestido e se parece com um professor. Quem sabe um lembrador de coisas que, em algum lugar, já sabemos. Traz consigo uma pasta. De dentro dela, tira três pedaços de giz branco. Três pedaços de giz enfileirados sobre a mesa, como três troncos derrubados, como três corpos enterrados. A água que estava na garrafa, como de costume, é derramada dentro da xícara até então cheia de ar. É derramada lentamente, qual fosse a areia de uma ampulheta que marca no espaço a passagem do tempo.
As plantas ensinam em silêncio. Os seres humanos, geralmente, não. Pouco a pouco, o espaço da sala se enche de palavras, assim como o quadro verde-escuro. A primeira palavra a ocupar o quadro é Colônia, e em torno dela, como numa colmeia, outras palavras e imagens vão se organizando. Trata-se, no entanto, de uma organização peculiar, anti-cartesiana, que somente com o tempo, quem sabe, se explique. Inscritas no quadro verde-escuro, assim como no tempo e no espaço, as palavras se organizam para desorganizar. Brasil, açúcar, ficção, metáfora, insetos sociais, the walking dead. Algo parece estar fora de controle no texto que, palavra por palavra, chega aos nossos olhos e ouvidos. Mas isso não impede que, entre um silêncio e outro, o corpo continue a falar. E isso é bom.
Colônia é a primeira palavra a ocupar o quadro verde escuro e também o título da obra teatral realizada pelo ator Renato Livera, o diretor Vinícius Arneiro e o dramaturgo Gustavo Colombini. Conforme perceberemos mais adiante, no entanto, há muitos outros corpos dentro e fora de cena, acima e abaixo da terra. O corpo vivo que vemos tem os pés fincados no chão, os olhos fixos no público e uma postura quase sempre incerta, como a de quem está chegando, mas pode partir a qualquer momento. Ele está entre nós.
Enquanto permanece conosco, lembra que o ser humano é uma medida ineficaz. Como quem recusa a irracional lógica antropocêntrica, ele nos recorda da sabedoria das abelhas, tão sábias que sempre fazem o que precisam fazer, garantindo, com isso, a sobrevivência da própria espécie. As abelhas sabem o que fazem, alguns seres humanos, historicamente, não. Somos lembrados que “toda colônia é de exploração”. Seja há quinhentos anos, quando chegaram às terras de Abya Yala os colonizadores. Seja há apenas algumas décadas, quando em terras frias do estado de Minas Gerais estabeleceu-se o Hospital Colônia de Barbacena. Dentro ou fora das paredes do hospital, vivemos todos, em maior ou menor medida, sob o regime da colônia, no qual os desajustados às imperativas e imperialistas normas da modernidade, historicamente, não têm vez.
Sem vez nem voz, são excessivamente muitos e muito diversos os povos esquecidos, enterrados e encarcerados em nosso colonizado território. Esquecidos, enterrados e encarcerados junto às suas palavras, pensamentos e epistemologias, que aos corpos viventes de hoje em dia, segundo testemunhamos em cena, cabe lembrar, escavar e resgatar. Ouvimos, enquanto buscamos decifrar o quadro verde-escuro, que silenciamento é morte, que as palavras presas provocam loucura e que o fim das metáforas talvez signifique o fim do mundo.
Conforme nos recorda a professora e ativista estadunidense-equatoriana Catherine Walsh, Abya Yala é o nome que os povos Kuna-Tule deram às terras “americanas” antes das invasões coloniais. Entre os significados geralmente atribuídos ao termo, conta a professora, figuram expressões como “terra madura”, “terra viva” ou ainda “terra em florescimento”. “Aquilo que sonhamos é qualquer coisa que já tivemos”, pondera, por outro lado, o poético lembrador que temos à frente, para mais adiante borrar todo o quadro (incluindo a palavra colônia), num gesto que parece apontar, aos nossos olhos e sentidos, lógicas outras de escuta, aprendizado e experiência.