por Davi de Lacerda
Quando eu tinha 12 anos, minha tia cochichou no meu ouvido: “mais vale cair em graça do que ser engraçado”. Estávamos em um circo, e, seu comentário se referia a uma atriz de pequena estatura que, gloriosamente, portava um estandarte, ofuscando as travessuras de dois palhaços que a seguiam.
Esse ditado invadiu minha cabeça enquanto eu descia as escadas de acesso à Sala Adoniran Barbosa, no CCSP, para ver Graça, espetáculo coreografado por Elisabete Finger, em parceria com a companhia potiguar Giradança.
E, da escadaria, eu pude ver três corpas, cujas graças eram Jânia, Francisca e Joselma. A primeira delas, uma mulher com nanismo, provocou o flash na minha memória.
Imóveis, elas faziam alusão direta a estátuas gregas e também à pintura A Primavera, de Botticelli, na qual as três graças se destacam. Mas, contrariando os clássicos, compunham figuras futuristas. Cada uma segurava um pequeno globo violeta em uma das mãos, que se fundia a seus membros pintados na mesma cor. Vestiam shorts esportivos em tecido sintético vermelho, e, sobre seus troncos desnudos, havia faixas pintadas também em vermelho. Por meio do figurino, eram transportadas a um momento incógnito: um período antes dos tempos, quando nascem as deusas.
Graça tanto me encantou quanto teve momentos engraçados. Sua coreografia pulsa em espiral, em um movimento “como se fosse aquele da água se esvaindo por um ralo”, analogia usada por Elisabete em uma conversa que tivemos depois da peça. Na obra, há momentos em que as três corpas se fundem em imagens icônicas, como a escultura Pietà, de Michelangelo. Em outros, elas performam, eroticamente, ritos de fertilidade: transando, parindo e amamentando. Às vezes, fazem o público gargalhar. Suas fricções corporais, sons ininteligíveis e palavras soltas compõem a sonoplastia.
Trata-se de dança ou performance? Não é fácil precisar. Tudo se funde em Graça, celebrando feminilidades que desafiam padrões estéticos nomeados por homens.
Graciosamente, o que falta a uma das corpas é justamente aquilo que completa as outras duas. Na trindade, cada deficiência individual se expande em soluções compartilhadas, fruto dos desafios cotidianos vividos pelas integrantes da Giradança.
Terminada a apresentação, Francisca esboçou uma lágrima, sem conter a emoção que também transbordava de Jânia e Joselma. Soube por Elisabete, que, para poderem se apresentar na MITsp, tiveram que superar mais desafios do que é necessário para chegar ao Olimpo, de onde nunca mais sairão.
Este texto é uma produção para as Escritas Primordiais, da Prática da Crítica, no eixo Olhares Críticos da 10ª MITsp. A atividade é coordenada por Rafael Ventuna, com supervisão de Sayonara Pereira e produção de Alice Mogadouro.
Davi de Lacerda é artista visual e dermatologista. Graduado em Medicina e Ciências Sociais pela USP. Suas obras deslocam simbolicamente objetos, transformando-os em narrativas e textos literários. Em 2025, publica seu primeiro livro: Jessica Redes – A Boneca Explosiva.