Por Alexandra Gouvêa Dumas1
A questão identitária foi um elemento que muito me atravessou na leitura que fiz dos espetáculos a que assisti na Mostra Internacional de São Paulo (MITsp) de 2024 no período de 1º a 4 de março. O meu recorte preferencial adotado como requisito nas minhas escolhas do que assistir passou intencionalmente pelo viés das poéticas negras, já que isso compõe meu interesse pessoal e profissional. Mas não me limitei a assistir apenas ao que era “negro”. Até porque a complexidade dessa questão me faz recorrer a muitos referenciais teóricos e estéticos, muitos deles, inclusive, fora do campo da discussão racial.
Ainda assim, de tudo o que vi, não consegui me desvencilhar de um ponto muito caro na discussão racial, que é a questão identitária. Stuart Hall fala de identidade em alguns dos seus escritos. Para ele, “Temos tentado teorizar identidade como algo constituído, não como um espelho complexo que reflete o que já existe, mas como a forma de representação que consegue nos constituir como novos sujeitos e, portanto, nos permite descobrir lugares de onde falar” (Hall, 2018, p. 97). Dessa afirmação provocativa tento ampliar minha percepção do que leio em Preta Rainha. Acho que seria menos producente me concentrar apenas no levantamento de aspectos críticos do espetáculo. Por isso, escolho destacá-lo, preferencialmente, como um propulsor reflexivo.
Em cena, temos a artista Wilemara Barros com 50 anos de trajetória, um corpo negro-pardo e que traz essa experiência existencial indiretamente para compor a cena. Digo indiretamente porque talvez tenha sido eu mesma quem trouxe esse olhar seletivo para conversar com as tantas questões que borbulham no meu pensar acerca das identidades diaspóricas, inclusive as “parduras”. O corpo pardo já é um tema de extrema delicadeza por vivermos uma estratégia, por ora necessária, por ora limitante, de afirmação fixada no fenótipo, estabelecendo constantemente uma negociação com as estruturas racistas, incluindo-o em uma categoria, a do negro. Estou aqui tentada a entrar nessa espinhosa discussão que já me trouxe embates em conversas aquecidas e estimuladas por goles de cerveja. Mas, mesmo sendo este momento no qual escrevo uma noite de sexta-feira, vou me conter e me ater a pensar a identidade e restringir essa conversa aos livros, às questões derivadas da apreciação de Preta Rainha e à minha água gelada. Assim, a “retintez” do pardo e uma possível relação com o espetáculo ficam guardadas para uma outra ocasião. Vamos para o palco!
Na sinopse de Preta Rainha, apresentada no catálogo resumido do evento, consta que o solo “dá continuidade aos diálogos e pensamentos da artista acerca do corpo negro e suas possibilidades na dança” (MIT, 2024, p. 53). É informado também que a artista mergulha no passado para caminhar no presente. Alguns elementos dessa história se manifestam na visualidade cênica. O cenário é composto de elementos que nos reportam, de forma bastante imediata, a uma já reconhecida cultura negra brasileira: recurso audiovisual referenciado em religião de matriz africana, tambor percutido em cena, jarros com a planta espada de Ogum/espada de Iansã, a dança com inspiração em orixás… O próprio ponto de partida do espetáculo é dado com a música de Paulinho Camafeu, lançada pelo bloco afro-baiano Ilê Aiyê, cantada por Wilemara à capela, adentrando a plateia e se direcionando ao palco, que traz a seguinte pergunta: “Que bloco é esse?” O compositor baiano traz a resposta na própria canção: “É o mundo negro que viemos mostrar pra você”. Sendo um espetáculo declaradamente autobiográfico, fui instigada a saber que mundo negro é esse que constitui a biografia de Wilemara e sua elaboração em Preta Rainha. O espetáculo me deixou com um certo vazio, o que fez com que eu ficasse desejosa de que ele fosse preenchido pelas subjetividades constitutivas da artista. O mundo negro que me foi revelado parecia compor um substrato de cunho essencialista.
Vamos trazer de novo Stuart Hall para a conversa. Ao falar sobre identidade cultural, ele diz que ela “Não é algo e pronto. Não é uma origem fixa para o qual podemos perfazer algum tipo de Retorno final e absoluto” (Hall, 2018, p. 90). Acho que, motivada pela curiosidade ou pela subjetividade complexa que não me foi revelada, quis e fui procurar mais informações sobre a vida da artista. Ela é cearense, de Fortaleza, iniciou sua formação em projetos sociais, tem uma trajetória reconhecida como dançarina e professora na área do balé clássico e da dança contemporânea. O que poderia ser um interessante dado de problematização criativa para a construção cênica soa como algo a ser descartado como se não coubesse em sua Preta Rainha.
Conheço uma grande artista da dança, intelectual, mulher negra, com a faixa etária aproximada da de Wilemara, que me testemunhou suas experiências como graduada em Dança pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Nos estudos que envolviam o balé clássico, sua negrura chegava a ser vilipendiada pelas exigências que faziam sobre seu corpo para se adequar ao exemplo modelar branco: cabelo muito esticado e preso em coque, sua bunda projetada era posta como empecilho para uma execução da leveza nos passos… Seu corpo negro era lido como um trambolho, rejeitado para o que era considerado clássico na dança.
Wilemara Barros nos revela em uma fala confessional em cena que até a sua juventude, nas suas apresentações de balé, costumava usar maquiagem branca para clarear seu rosto, seus braços e todo o seu dorso. Ela declara: “Isso era uma influência da dança europeia que eu vivi. Mas essa mesma dança que me impôs a um processo agressivo de distanciamento da menina preta que um dia eu fui fez de mim uma profissional respeitada, abrindo caminhos para que eu pudesse estar em lugares de visibilidade. A essa dança, eu sou imensamente grata!” A gratidão por ela revelada soa, para mim, como algo que legitima a violência estética e identitária impetrada ao seu corpo. Atinge-o em seu aspecto mais frágil, que, a meu ver, é a infração da dignidade em ser na plenitude da sua potência e sua pluralidade negras.
Wilemara Barros, nascida em 1964, é considerada uma das primeiras bailarinas negras do Ceará. Afirmou em entrevista que seu “corpo é um instrumento político”, porém no seu solo me parece desprezar as oportunidades cênicas em potencializar a poética dessa discussão. O discurso proferido em um corpo quase parado e nitidamente panfletário parece colocar em contraposição a ingenuidade das palavras frente à experiência corporal da artista. Ela estica esse momento discursivo dizendo: “Se hoje eu estou aqui, é graças à minha resiliência e ao meu senso de permanência. Por isso, precisamos ocupar todos os lugares possíveis pra saber de fato quem somos e, sobretudo, nos manter vivos, sair das nossas bolhas para fortalecermos o discurso, o nosso discurso e as nossas ações antirracistas”.
Outro ponto que destaco da cena é quando Wilemara Barros diz que não é do Candomblé, ainda que boa parte da sua dança em Preta Rainha mostre uma movimentação baseada nessa religião. Dos belos vídeos que compõem o espetáculo, há cenas de mulheres vestidas com roupas e contas narrando relações familiares de pertencimento religioso e de afetos; o seu cabelo crespo é cuidadosamente penteado pelas mãos de uma mãe de santo em frente ao mar, com um canto de saudação a Iemanjá. O espetáculo formula sobre o “corpo negro e suas possibilidades na dança”, algo que já nos é bastante conhecido em termos das negruras corporais. Sem remover a fundo o que foi enterrado na sua própria história, a escavação da biografia da artista parece partir certa, e assim direcionada, para o que quer encontrar.
Os mistérios, o desconhecido, a poesia que coletivizam e particularizam esse corpo pardo-negro-preto ficam como que subjugados aos elementos previamente elencados como propulsores da criação. Para a artista, esse trabalho é, como ela mesma diz em cena, “a virada de chave da forma como eu percebo a minha ancestralidade e o meu lugar de fala. Eu sou uma mulher preta. Passei por um forte processo de embranquecimento…” No entanto, as linguagens – como música, vídeo, texto, dança – em Preta Rainha são apresentadas como que separadas, sem interseções, em momentos específicos para cada uma, e nesses fragmentos a escavação de si descarta um modus corporal muito presente nas tradições negras e negro-brasileiras, que é a não necessária compartimentalização do eu coletivo, tampouco das formas de expressão de pensamentos, das e nas linguagens.
Então, escapulo do espetáculo para viajar em uma pergunta persecutória: sendo uma mulher identificada e declarada como negra, o que me diz a negrura construída em cena em Preta Rainha? O espetáculo se predispõe, como afirma a sinopse, a girar em “torno de sua trajetória de 50 anos no universo da dança”. Sendo a artista com reconhecimento indiscutível no campo da chamada “dança clássica”, por que a sua construção cênica e autoral de corpo negro escolhe se concentrar em elementos evidentes de uma certa e até hegemônica identidade negra? Estamos nós aprisionadas na formulação identitária de um determinado jeito e uma possibilidade de sermos negras?
Creio que a constituição da negritude, localizada na experiência da escravização, nos impõe (falo de pessoas negras) um enlace comum, mas não necessariamente uma reatividade que deva ser igual na nossa impermanente formulação do ser. O filósofo Érico Andrade partilha sua impressão pessoal: “Meu processo de desidentificação não deveria ser uma forma de substituição de uma identidade por outra. Isto é, trocar uma identidade fantasiosamente branca, que se encontrava dissimulada com a categoria de pardo, por outra identidade de negro, como se ser negro implicasse, por exemplo, assumir um nome de origem africana ou reivindicar uma realeza africana” (2023, p. 147). Talvez a compreensão de si como um ser “pardo”, um que é, sendo um entre, um estado identitário movente relacionado à miscigenação racial e cultural, assaz complexo, promovesse perguntas e assim caminhos de investigação e de criação mais largos. De pronto, eis que me vejo como uma espectadora que partilha nesta escrita a sua expectativa (quem sabe autoritária) sobre a obra apreciada. Especulo uma sombra criativa sobre o que foi visto: contemplando, eu me insiro e, formulando imaginativamente outras cenas, reinvento e amplio as possibilidades sobre um corpo negro.
Por isso, o que me mobilizou nesse espetáculo foi algo que ele não me mostrou. A ausência se impôs a mim pelo que não vi, pois desejei muito assistir àquele corpo bem curado no tempo da experiência me falar de outras evidências negras, se aprofundar em suas aparências ou trazer à tona suas possíveis e plurais essências… Fiquei com vontade de vê-la mais vezes em cena para, quem sabe, assim ver o tempo se espiralar no corpo dessa grande bailarina.
1 Professora do Departamento de Fundamentos do Teatro, da Universidade Federal da Bahia.
Autores e obras citadas:
ANDRADE, Érico. Negritude sem identidade: sobre as narrativas singulares das pessoas negras. São Paulo: n-1 edições, 2023.
HALL, Stuart. Identidade cultural e diáspora. In: PEDROSA, Adriana; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André (Orgs.). Histórias afro-atlânticas. Vol. 2. São Paulo: MASP, 2018.
MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021.