Pedras e pães de toque

Ané das Pedras. Foto de Guto Muniz

Por Valmir Santos

Na condição de ser urbano plantado na metrópole, a experiência de acompanhar as criações de artistas indígenas argentinos e brasileiros permitiu divisar aspectos das culturas e identidades de seus ancestrais. Além do caráter contracolonial incisivo em falas, sussurros, silêncios e olhares, Wayqeycuna e Ané das Pedras convergiram alteridades simbióticas aos seus lugares de origem. Em tempo: Wayqeycuna pronuncia-se “uaiquecuna”, expressão quéchua que na língua da Civilização Inca significa Meus Irmãos.

No trabalho solo do artista visual, diretor e performer Tiziano Cruz, nascido e criado no povoado de San Francisco, na província (equivalente a estado) de Jujuy, no extremo norte da Argentina, região que faz tríplice fronteira com Chile e Bolívia, a territorialidade de pertença é delineada por fatos, vozes e imagens de familiares trazidos à narrativa. 

Já a Coletiva Flecha Lançada Arte é formada por pessoas da etnia Kariri-Xocó: a artista Barbara Matias, nascida e criada na comunidade Mareco, na aldeia Marrecas, distrito de Quitaíus, cidade de Lavras da Mangabeira, no cariri cearense; a liderança espiritual Idiane Crudzá, escritora e professora da língua de seu povo em Porto Real do Colégio, cidade alagoana natal; e o professor e ativista Joedson Kariri, que faz uma participação na parte final, nascido em Juazeiro do Norte e atualmente trabalhando na cidade do Crato, também no cariri cearense.

Cravar as geografias nesse exercício de aproximações é importante para mostrar o quão criadoras e criadores, avizinhados na programação da 9ª MITsp, contribuem para redimensionar a percepção de teatro em comunidade. Seja por meio de uma pessoa, dupla ou trio, trocaram com públicos na cidade de São Paulo a partir da memória e do convívio com os seus. Para tanto, elaboraram cenas povoadas, carregadas de múltiplos sentidos e capazes de abrir janelas para se imaginar ou visibilizar pessoas, artes, culturas e paisagens historicamente marginalizadas.

Em Wayqeycuna, Cruz se propõe a encerrar o luto pela irmã, Betiana Cruz, morta em 2015, aos 18 anos, após dar à luz a Tiziano, mesmo nome do tio artista. Betiana fora vítima de negligência médica, conforme Cruz relata em entrevista ao professor Rodrigo Dourado (UFPE), no catálogo da mostra. O contexto é de uma família submetida à realidade da pobreza estrutural. Ela perdera os dentes nos últimos anos de vida, há tempos não sorria. Na dramaturgia: “A menina desdentada, escreviam nas paredes da cidade. Um pobre pode ser reconhecido por seus dentes”, afirma. Ou pela ausência deles.

Aos poucos, a classe social, o racismo e a xenofobia são apontados no roteiro como marcadores de violências com as quais artista e familiares são confrontados desde que se dão por gente. Para não dizer dos ancestrais massacrados, sujeitados a deslocamentos, a trabalhos forçados e vitimados por doenças inexistentes antes da colonização por espanhóis e portugueses que exploraram riquezas como minério e agricultura.

O discurso de Cruz corresponde a um manifesto em tons poéticos, veementes e de denúncia, como já teria enunciado nas outras partes da trilogia Tres Maneras de Cantarle a una Montaña [Três Maneiras de Cantar para uma Montanha], cujo desfecho estreou mundialmente aqui: Soliloquio (Me Desperté y Golpeé mi Cabeza contra la Pared), de 2022 [Solilóquio (Acordei e Bati minha Cabeça contra a Parede)] e Adiós Πατέρας (Un Ensayo sobre el Recuerdo o la Despedida), de 2023 [Adiós Πατέρας (Um Ensaio sobre a Memória ou a Despedida)]. 

A maneira como sinaliza contradições de si e critica o mercado de arte e o circuito de festivais em que ele mesmo está submerso, numa espécie de operação Robin Hood, daria margem a outras frentes a elucubrar. 

Mas opto por colocar em relevo face menos endógena aos meandros da produção e circulação artísticas, porém tão política quanto: o modo como dispõe os fios de sua comunidade ao mesmo tempo em que a tece com referências autobiográficas e incorpora o sobrinho e o pai como arrimos de uma narrativa que soma trechos em vídeo captados no vilarejo com o qual, espectadores, vamos nos familiarizando, capturados por vozes cadenciadas, sons de passarinhos, ovelhas pastoreadas, silêncios dilatados e áreas verdes abundantes moldadas por montanhas cujos topos aparecem cobertos de nuvens ou neblinas, em meio a vales e planaltos.

Cruz rege tudo ao redor e a si com parcimônia. É o operador absoluto, apesar da equipe envolvida no processo. Se, por um instante, ele para na lateral do palco para beber água na garrafa, o faz com toda a naturalidade presumida nessa situação ordinária. Como se desejasse revelar o artifício. O tempo expositivo entre o que diz e o como age soa refratário ao ato de representar. A ponto de atingir monotonia na entonação de voz e de fixar certa continência gestual ao potencial expressivo do corpo. Ambas estratégias performativas podem estranhar, mas resultam congruentes com a ambição formal e a perspectiva histórica que alcança.

É engenhoso ao compor “Uma vida inteira em uma urdidura”, como arremata. Cruz coabitou o palco do teatro do Itaú Cultural com tecidos, adereços e objetos manejados pelo próprio. As mutações nas texturas da cenografia, do desenho de luz e dos figurinos culminaram na rememoração de quando percorria o chão e as casas da aldeia na infância, em Dia de Finados. Na ocasião, cada família preparava uma oferenda de pães em homenagem às pessoas que já não estavam entre elas.

Em determinado momento, o público se vê transportado à memória narrada ao escolher, se assim desejar, pedaços de pães oferecidos em cestas pelo atuante e pela equipe de produção, a fim de retratar a tradição daquela comunidade argentina. A versão brasileira, por sua vez, foi fruto da articulação da produtora Karina Legrand junto a um projeto social do Programa Operação Trabalho, da prefeitura, que mantém um curso de panificação para pessoas em vulnerabilidade.

Tocar e mastigar o pão artesanal e rústico materializa um tanto da travessia das perdas e das tantas injustiças sociais, econômicas e culturais trazidas a primeiro plano em Wayqeycuna. No início, Cruz chega a pronunciar, em tom messiânico: “Comam e bebam de mim, este é o meu corpo. Estou pronto para alcançar a vida eterna”. Mas sua jornada de volta para casa, por assim dizer – pois desde a morte da irmã vivera em Buenos Aires – não passa pelo caminho da aura cristã. Antes, alicerça seu trabalho em pensares e fazeres artísticos cada vez mais autóctones.

A aversão às pessoas pobres e à pobreza explicitada por Cruz também faz parte da estigmatização das populações indígenas no Brasil. Não raro, o medo, a rejeição e a hostilidade rondam suas aldeias ou seus trânsitos por centros urbanos. Ao empregar o conceito de aporofobia, nos anos 1990, a filósofa e professora espanhola Adela Cortina, da Universidade de Valência, buscava diferenciar essa atitude da xenofobia, a rejeição ao estrangeiro, e do racismo, a discriminação por grupos étnicos.

Quando a atuante Barbara Matias deixa o ventre do austero e imponente prédio da Biblioteca Mário de Andrade, construído em estilo art déco, de formas geométricas acentuadas, ela desce a escadaria e ganha a calçada carregando consigo a identidade e a cultura Kariri-Xocó. As pinturas no corpo e no rosto, feitas provavelmente por meio do corante natural urucum, a vestimenta, os adereços, o maracá (chocalho) em punho e um vaso também feito de cabaça, cheio de pedras, caracterizam, de largada, uma corporeidade, uma sonoridade e uma paisagem instauradoras de tempo e de sentido constitutivos da fruição, individual e coletiva, proporcionada em Ané das Pedras.

Ané das Pedras. Foto de Guto Muniz

Pedestres ou quem dirige carro, moto ou bicicleta naquela área da rua da Consolação, nos chamados dias úteis, proximidades do acesso ao metrô Anhangabaú e a dois quarteirões do Theatro Municipal de São Paulo, decerto estão a par dos tensionamentos gerados pela insegurança. Assim como um considerável número de pessoas que se dirigiu até lá pautadas exclusivamente pela agenda da mostra. Contudo, o público foi estimulado a contracenar no ambiente urbano de maneira outra, caminhando até a lateral da quadra onde fica a biblioteca. Ao dobrar a esquina, havia uma viatura da Polícia Militar estacionada sobre a calçada, com luzes intermitentes a girar e agentes do lado de fora. “Não sei do que se trata”, respondeu um policial ao ser perguntado por um passante a propósito do que era aquela gente de andar compassado.

Nesse cenário, os dispositivos que de fato nos guiavam eram: 1) o olhar magnetizante de Barbara Matias nas abordagens pontuais e pessoais que circunscreviam uma dramaturgia performada mais adiante; 2) as pedras, que cabiam na palma da mão, dela e nossa, por meio da qual a artista, em ação solo na etapa inicial, interagia com interlocutores e interlocutoras com assertividade e afeto, por vezes tocando a pele alheia com o mineral e sussurrando uma frase de efeito ao ouvido; e 3) o maracá que ela toca, fazendo com que o ritmo das pedrinhas ou sementes sacudidas no interior da cabaça seca e oca propiciasse um estado de concentração indutor do cortejo composto de dezenas de espectadores. Em vez do clima de festa ou de cerimônia guerreira, em que o instrumento costuma ser usado nas práticas e vivências indígenas, os passos firmes e desacelerados rumaram para um anunciado ritual de plantação de pedras (no que se infere o destino coletivo das mesmas).

A caminhada alcança um jardim ao redor de uma árvore centenária, a castanheira Sapucaia, atrás da biblioteca e junto à Praça Dom José Gaspar. Ela foi ali plantada e crescida antes mesmo da construção do edifício-sede, inaugurado em 1942. Com pés descalços na terra e na grama, somam-se à condutora Barbara as presenças de Idiane Crudzá, que entoa cânticos e palavras na língua do povo Kariri-Xocó, enquanto pita um cachimbo longo do qual emana a fumaça considerada sagrada, e Joedson Kariri, que deixara preparada a pequena fogueira em torno da qual o público agora se dispõe em círculo, sempre sob a luz do dia.

Desde o início convencido de que testemunhamos uma ação absolutamente desgarrada das convenções espetaculares, mesmo para certos parâmetros do milenar teatro de rua, a essa altura a micropolítica funde-se à microfloresta, escala mimetizada em Ané das Pedras a partir da cosmovisão indígena que a maioria dos habitantes da cidade ignoramos em essência, a exemplo das espiritualidades e dos saberes autossuficientes dos povos originários que remontam a tempos imemoriais.

Idiane pede “a força da Mãe Terra e também a força da Mãe Natureza”, o equivalente à Pachamama, em quéchua, divindade da mitologia indígena na zona central dos Andes. A liderança espiritual e artista sabe que “o Grande Espírito” olha por todos os seres vivos – há pouco ela viveu o luto pela perda de uma filha, revelou Barbara no diálogo final com o público. Mas Idiane não abre mão do trabalho sobre si e o mundo em volta. “Se você acredita nos homens, vem sonhar com as pedras”. Ciente de que nada é sem luta, citou uma das palavras de ordem do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST.

Assim, tanto em Ané das Pedras como em Wayqeycuna [Meus Irmãos], a depreciação da dignidade da pessoa humana e de sua cultura é problematizada sob o escrutínio da arte e da postura política segundo as dinâmicas de cada universo evocado.

Em nossa dupla experiência, fomos tocados por signos elementais e sensoriais: a pedra e o pão. Sabemos que pedra é matéria-prima extraída da natureza, precisamente das rochas. Das lascas de pedra nasceram as primeiras ferramentas na Pré-História. O pão atravessou mais de 6 mil anos, entre fomes e guerras. Receita inventada no Egito cerca de 4000 a.C. A massa deriva do grão da planta de trigo, base da farinha em geral misturada à água, sal e um pouco de fermento, para descansar e em seguida assar. Detalhe: a Argentina é um importante exportador mundial de trigo, sendo o principal fornecedor ao Brasil.

Tal qual as criações de Tiziano Cruz e da Coletiva Flecha Lançada Arte, a pedra e o pão têm suas texturas, funções e simbolismos. Nelas, tudo é ressignificado com ímpeto por artistas indígenas antenados às ancestralidades e às ambições da cena contemporânea. Particularmente, aportam um debate sobre as potencialidades do sedimento comunitário na arte. Não parecem romantizar o conceito de comunidade, suas armadilhas. Antes, cenas descortinam portais.