Lança Cabocla e o gesto de macerar como movimento de transfluência

Lança Cabocla. Foto de Guto Muniz

Por Anderson Feliciano

“Sem folha não tem sonho
Sem folha não tem vida
Sem folha não tem festa
Sem folha não tem nada”
 Maria Bethânia

Um possível começo. 

A convite das curadoras Leda Maria Martins e Natasha Corbelino, participei do eixo Olhares Críticos, na atividade Prática da Crítica, da 9° Mostra Internacional de Teatro de São Paulo. Dentre algumas questões levantadas assumi como missão dialogar com a pergunta: como produzir arquivos e criar memórias sobre as artes da cena que já instauram futuros agora, ao despertar em quem lê o desejo de conhecer Lança Cabocla? O objetivo desses escritos é partilhar meu percurso pela mostra, como foi proposto pela curadoria, numa espécie de matéria-testemunho, deixo aqui minhas impressões e apresento o gesto de macerar como movimento de transfluência, tecnologia proposta pelo filosofo e líder quilombola Antônio Bispo dos Santos, mais conhecido como Nego Bispo, capaz de poeticamente atritar, nem que seja no tempo/espaço proposto pela ação, o mundo como o conhecemos. 

Durante 10 dias acompanhei a programação da mostra. Assisti nesse período 8 espetáculos internacionais, 5 nacionais, as aulas-magMas com Achille Mbembe e Jota Mombaça e ainda algumas ações do eixo pedagógico curadas por Dodi Leal e Luh Maza. Fica a certeza de que todo o vivido aguça e dilata meu olhar para a realidade violenta que nos ronda e o desejo que muitas daquelas imagens quebrem certas noções de realidade. 

Dentre as muitas obras que vi, o gesto de maceração em Lança Cabocla chamou minha atenção. Mais para frente apresentarei os motivos do interesse nesse gesto. Por hora, de acordo com a sinopse, 

o espetáculo multimídia nasce de estudos da performatividade em danças populares e afrodiaspóricas, transitando entre o pensar e o dançar contemporâneo e as cosmologias ancestrais. Investiga um dançar-aparição, aliado às plantas de proteção e às danças de caboclo. Os performers propõem uma experiência multissensorial na qual o público é convidado a construir conjuntamente o espaço. A ação ocorre simultaneamente entre a criação sonora desenvolvida em tempo real por Runa Francisc e a dança-travessia realizada por Tieta Macau, Abeju Rizzo e Inaê Moreira. Neste percurso, entre o escuro e o invisível, surgem macumbarias dançantes e sonoras.

Diante do cenário apresentado na sinopse, a tentativa dessa matéria-testemunho é apresentar o que vivenciei com aquele acontecimento. Tempo/espaço de suspensão, cheiro de arruda e outras plantas que não soube identificar, além das espadas de São Jorge, velas, colares, tecidos vermelhos, saias rodadas, vários círculos de sal dispostos com elementos dentro, bacia com água, corpos cavalgando, rodando, cantando, gargalhando, emitindo sons, sons das matas, das florestas, tudo em movimento, se transformando, e como lança atravessava meu corpo e o enchia de alegria, de desejo de movimento, de brincar, de sair correndo, galopando, saltando. Tudo encantando e eu sendo encantado. Por isso a ação de macerar, que devido as pesquisas que venho desenvolvendo, me chamou muita atenção. Retomo então, em diálogo com as proposições de Nego Bispo, o gesto de macerar, um dos elementos que compõe Lança Cabocla, como movimento de transfluência. Pois com a obra transfluindo, confluindo e transfluindo éramos “começo, meio e começo” (Santos, 2023, p.49). Tudo era movimento e com o balanço das saias, os corpos se moviam, as imagens se moviam, os espaços se moviam, os tempos se moviam, meu olhar se movia e as paisagem eram reinventadas e transformadas. 

No meio do começo. 

Depois de assistir Lança Cabocla, ainda muito movido pelo vivido, segui para ocupação 9 de julho. Tinha como companhia o programador de um festival europeu. Compartilhamos por longas horas nossas impressões sobre a obra. Apesar de ter gostado muito do trabalho, ele me disse que precisava de mais informações para que sua leitura não fosse atravessada apenas pelo exotismo, queria diluir a impressão do seu olhar exótico para o que havia experenciado. Sem compreender o que ele entendia por exótico, a conversa tomou outro rumo, já não conversávamos mais sobre a obra, transfluíamos com ela. Buscávamos na memória do corpo aquilo que havia sido transformado pelo modo como cada um olhava para ela. Para ele os elementos que compunham a poética da obra eram distantes do seu universo, já para mim estes mesmos elementos já estavam recorrentes nas poéticas com perspectivas que procuravam dilatar o imaginário colonial. E que a força da obra estava justamente no modo como eram operados em cena. Nos questionávamos se era preciso ou não conhecer tudo para que uma obra fruise de outra maneira. E foi inevitável não me lembrar do Glissant e o seu direito a opacidade. Lança Cabocla também é pura neblina, puro mistério, pura luz e escuridão. E talvez por isso me instigou tanto. Meu esforço estava em atritar aquilo que já havia se cristalizado no meu imaginário e me deixar ser atravesso pelo mistério, ser guiado por aquilo que desconheço e assim ser no coletivo e construir junto. Exercício que se dava à medida que me envolvia com a sonoridade, com o movimento daqueles corpos pelo espaço, com o cheiro das plantas. No fim percebi que havia sido hipnotizado por aquele canto que ainda ecoa. Deixei-me ser conduzido pelo mais desconhecido de mim mesmo e em alguma medida compreendi que “na transfluência não há volta, porque ela é circular. Ao mesmo tempo que algo vai, fica; ao mesmo tempo que fica, vai – sem se desconectar”. Lança Cabocla é um convite a deixar o corpo dançar.

Ainda caminhando pelo meio. 

Quando cheguei no hotel, olhando pela janela do 14° andar, ouvi Maria Bethânia cantando salve as folhas e pensando na obra, de olhos fechados, lancei-me no escuro. 

Lança Cabocla. Foto de Guto Muniz

Um outro possível começo. 

Antes de sair, num entre o lugar onde a obra aconteceu e a porta para a rua, pouco iluminado, um recipiente com água e as imagens/folhas maceradas no percurso da cena. Desejei ser banhado por aquela água com as imagens/folhas maceradas, mas como era pequeno, introduzi minhas mãos e de olhos fechados, devagarinho molhei meu rosto. Ao abrir meus olhos as pessoas em volta se abraçavam e celebravam a vida. 

No início do começo. 

Há alguns anos associo aos meus processos de criação o gesto de macerar imagens como gesto poético que articula as possíveis relações entre os campos das dramaturgias com outras linguagens e os marcadores sócias da diferença, gênero e raça, colocando em atrito imagens cristalizadas pelo imaginário colonial, almejando extrair delas o que me permita construir uma poética singular, um modo de fazer que não negue as adversidades da vida. Movimento que também reconfigura o ritual de cura aprendido com minha avó e minha mãe, uma tecnologia ancestral que no lugar das folhas, macera imagens com o propósito de reivindicar o meu direito a opacidade e a ampliação de paisagens que dialoguem com a complexidade de nossas existências. Por isso e pela força que surge da presença daqueles corpos em movimento o interesse de pensar com Lança Cabocla. Obra construída com o público presente, um jogo que coloca em tensão o olho de quem olha e redesenha rotas de fuga a partir das imagens que vão sendo construídas. 

Uma pausa no começo.

Os almoços de domingo no quintal de casa eram sempre uma festa. Não havia um que não se deliciava com o cansanção com carne defumada da tia Zora. Naquele tempo de minha infância não conseguia compreender como ela conseguia transformar aquela planta que fazia todo o corpo coçar em um prato tão delicioso. Mas ela sempre me dizia que era o tempo. Paciência menino, o tempo tudo transforma!  Me segredava olhando nos olhos que sem folha não tem vida, não tem nada. 

Adorava quando íamos ao quintal para colher as folhas. Sempre saia de lá todo coçando, mas tia Zora não. Me ensinava que aquelas folhas de urtigas exigiam respeito. Seus gestos eram todos coreografados como num ritual. 

Devagarinho caminhava, em silêncio observava as folhas, se aproximava de uma a uma, dobrava-as e as arrancavam. Eram inúmeras horas ali na cozinha. Enquanto esperávamos o tempo da transformação do cansanção ela contava histórias e revelava segredos. Ficamos tão cúmplices que sabia o que queria dizer pelo modo que cortava os tomates ou preparava o angu.

Depois do início do começo 

O gesto de macerar como um exercício poético, um articulador que permite reelaborar, no presente, memórias e imagens de um imaginário colonial que persiste em durar e também discernir alguns traços e rastros que apreendam aquilo que é compreendido como diferença e a possibilidade de inventar algo novo ou pelo menos atritar o que está cristalizado. 

Um pouco depois do começo.

Pensar com Lança Cabocla se torna um gesto que reivindica a pluralidade de temas e formas para pensar poéticas de artistas que agenciam cosmologias ancestrais e elementos das danças populares e afrodiaspóricas. Não nos esqueçamos: tudo é começo, meio e começo. Digo isso porque na busca por construir outras paisagens, enquanto artistas racializados criando numa sociedade que ainda sustenta uma ideia de democracia racial, muitas vezes só reproduzimos o que está posto. O que não é o caso de Lança Cabocla. Há, no modo em que Tieta Macau, Abeju Rizzo e Inaê Moreira articulam elementos das danças populares e afrodiaspóricas com elementos do que apresentam como dançar contemporâneo, uma poética singular que não negando de onde vem, sabem o que querem desconstruir. 

Do meio do começo pro começo de outro meio 

Há algo na relação destas imagens do fotografo Guto Muniz que também diz da transfluência da obra e aponta indícios de como vai sendo construída coletivamente. A obra exigia que ele estivesse em movimento, que seu olhar estivesse em circularidade, assim como as presenças que ocupavam o meio da cena. No exercício de tentar capturar as paisagens que iam se construindo e desconstruindo e aquelas imagens fantasmagóricas em seu modo espiralar, o corpo do fotógrafo, assim como o meu, também se movia. Não sei se de imediato vocês percebem, mas na primeira imagem estou de costas e na segunda de frente para o acontecimento que se desenvolvia no meio. Na primeira o olho que olha por trás das câmeras está atrás de mim, na segunda está na minha frente. Lança Cabocla está no meio. Como numa espécie de terceira margem lança possibilidades de presente onde nossos desejos não são violados e todas as pessoas dançam e celebram a vida. 

Lança Cabocla. Foto de Guto Muniz

No começo do começo  

Em Cartografias, publicação da 9° edição da MITsp, Iara Biderman em Quem encanta, Quem é encantado, ao escrever sobre a obra anuncia que o 

encantamento se dá no longo crepúsculo coreográfico. O mover no ritmo das contrações e expansões dos mundos. O ritmo dos pés no chão e dos tambores. Tum tum tum, os ritmos da vida. As aparições dançantes se despem e se vestem, enquanto rastejam ou galopam – essa forma de voo que é ao mesmo tempo céu e terra – e giram, giram, giram.

Interessa-me aqui de novo, ao somar também a voz de Biderman, nessa matéria-testemunho, articular e de algum modo forjar uma possível resposta para aquela pergunta proposta pela curadoria. Ao somar vozes e outras perspectivas para pensarmos Lança Cabocla, vou produzindo arquivos, organizando uma cartografia afetiva e criando memórias que possam sensibilizar e despertar em você que me lê o interesse em fazer parte da construção dessa poética em movimento. 

Autor e obra citada:

Bispo dos Santos, Antônio. A terra dá, a terra quer; imagens de Santídio Pereira; texto de orelha de Malcom Ferdinand. São Paulo: Ubu Editora/PISEAGRAMA, 2023. 112pp.