Por Julia Guimarães
Em sua aula-magMa proferida também na programação desta MITsp, o filósofo camaronês Achille Mbembe trouxe a público uma pergunta tão direta quanto complexa, a respeito de como seria possível “desatar o elo histórico entre democracia e necropolítica”. Ao longo de sua palestra, o filósofo nos deu pistas sobre quais caminhos poderiam ajudar a “reencantar a democracia”, a fim de lograr desembaraçar os nós referidos acima.
Em uma das passagens de sua conversa com o público, Mbembe analisa um fenômeno cujo surgimento ele localiza em meados da década passada. Trata-se da crescente descolonização, ocorrida nos últimos anos, de instituições como as universidades e os sindicatos. O filósofo afirma que tal demanda tem estado no coração dos novos movimentos sociais, liderados, na maior parte das vezes, por estudantes. Como exemplo, cita processos de descolonização de currículos vivenciados na África do Sul, a partir de uma ampla reforma de instituições de ensino no país. Menciona, ainda, o desenvolvimento de ações que têm feito com que as universidades possam funcionar como “espaços de hospitalidade radical”. “As instituições que fazem segregação tiveram de ser repensadas, tornando-se espaço frequentado por todos e todas”, analisa.
Certamente, seria possível incluir as instituições culturais – e, dentro delas, os festivais de artes cênicas – no contexto da abordagem de Mbembe. Nesse cruzamento, poderíamos nos perguntar que contribuição um festival como a Mostra Internacional de Teatro de São Paulo possui no reforço do gesto coletivo de reencantamento da democracia aludido pelo pensador camaronês.
Vista sob uma perspectiva histórica das transformações operadas em sua primeira década de existência, a própria MITsp dá, com esta edição, um passo significativo rumo à sua própria descolonialização, sobretudo em âmbito curatorial. Trata-se de um movimento que tem sido recorrente em diversas outras instituições culturais, cujos vínculos com a democracia não remetem somente à potencialização desses espaços no âmbito da representatividade, mas em sua própria transformação como locus de uma esfera efetivamente pública.
Em sentido semelhante, o crítico de arte estadunidense Hal Foster, em seu livro O que vem depois da farsa, afirma que, nos últimos anos, estaria ocorrendo uma “revitalização parcial dessas instituições [culturais]”, cujo principal resultado seria uma “volta inesperada do museu e da universidade como possíveis locais de resgate da esfera pública, em que, ao menos em princípio, podem-se expressar críticas e se propor alternativas”. Na visão de Foster, tal transformação é fruto de movimentos ativistas que vêm tensionando as contradições entre “os compromissos públicos dessas instituições e os interesses privados que as dirigem”.
Além de abrigar, pela primeira vez desde 2014, um espetáculo de abertura que não vem da Europa, e sim, da África – caso do sul-africano Broken Chord [Acorde Rompido] – a MITsp teve este ano sua programação constituída majoritariamente por artistas vindos da África, América Latina, Oriente Médio e Ásia. E, assim como ocorre na trilogia hamartia, são também certos impasses culturais atrelados a um passado colonial que atravessam as discussões presentes tanto em Broken Chord [Acorde Rompido] quanto em Wayqeycuna [Meus Irmãos], sendo esta última uma estreia mundial do artista argentino Tiziano Cruz.
No caso do espetáculo sul-africano que abriu a mostra, sua dramaturgia parte do resgate de uma história esquecida sobre um grupo de jovens cantores africanos denominado The African (Native) Choir, formado por representantes da elite negra local educada por missionários. No fim do século XIX, o grupo realizou uma série de turnês pela Grã-Bretanha, Canadá e Estados Unidos a fim de arrecadar fundos para uma escola técnica. A despeito do sucesso de suas temporadas, foram vítimas de racismo nos diversos territórios por onde passaram. Devido a esse contexto histórico, em cada cidade onde o espetáculo se apresenta, Broken Chord [Acorde Rompido] conta com a presença de um coro local, formado por cantores e cantoras brancas. Tal procedimento faz lembrar que, a despeito dos tantos avanços ocorridos no combate ao racismo e à colonialidade, ainda perduram certos rastros dessas mesmas relações.
Protagonizado pelo excepcional bailarino Gregory Maqoma, a criação utiliza elementos da dança tradicional Xhosa [grupo étnico sul-africano] e da dança contemporânea para recriar o que teria acontecido durante essa turnê. Ao contrário tanto da Trilogia Hamartia quanto do espetáculo Wayqeycuna [Meus Irmãos], em Broken Chord [Acorde Rompido] parece haver, como sugere o próprio título, uma camada mais radical de ruptura quanto à gramática estética do teatro contemporâneo ocidental.
Ao apostar em um modo de abordar essa história centralizando no corpo e na dança seu principal território de enunciação poética, o espetáculo valoriza uma performance que, parafraseando a pensadora Leda Maria Martins – curadora do eixo Olhares Críticos desta MITsp junto com Natasha Corbelino –, compreende o corpo e a voz como “local de inscrição de um conhecimento que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia, na superfície da pele, assim como nos ritmos e timbres de vocalidade” .
Nesse sentido, é possível compreender o acorde rompido na obra de Maqoma e Sibisi também como o acorde dominante que permeia a normatividade estética dos padrões europeus. Aqui, o gesto de desdobrar a história, referenciado no início deste texto, passa radicalmente pela expressividade do corpo. Não por acaso, uma das diferenças mais evidentes entre a montagem sul-africana em relação à Trilogia Hamartia e à Wayqeycuna [Meus Irmãos] situa-se justamente nessa aposta do corpo como episteme, entendido como lugar de inscrição historiográfica.
Por outro lado, seria possível pensar que, mesmo sem colocar o corpo como parte fundante de sua estética, tanto a obra de Jaha Koo quanto a de Tiziano Cruz de algum modo o valorizam como receptáculo da experiência. A exemplo das criações do artista em foco, Wayqeycuna [Meus Irmãos] também entrelaça testemunhos biográficos com críticas sociais mais amplas. Outra semelhança é a inserção de sua obra em uma trilogia, na qual o criador indígena revisita suas memórias no interior do Norte da Argentina, ao mesmo tempo em que tece manifestos políticos sobre o mercado de arte e o privilégio de classe. Nesse trabalho, que encerra a trilogia, Tiziano recupera o episódio que o levou a compor o tríptico: a morte prematura da irmã, em 2015, decorrida, segundo o artista, da negligência dos órgãos de saúde pública de sua região.
Ao ver-se simultaneamente como indígena e como pobre, o artista entrecruza raça e classe para denunciar o descaso e a invisibilidade imputados pela sociedade argentina sobre o grupo ao qual pertence. Assim como nos outros trabalhos do tríptico – como no anterior Solilóquio, que pude assistir em Belo Horizonte – Tiziano Cruz espalha pelo palco diversas palavras projetadas, ao mesmo tempo em que se vale de um cenário minimalista, no qual um dos poucos objetos presentes é um manto que remete às relações comunitárias de sua região. O minimalismo cênico poderia ser visto como outro ponto de contato com o trabalho do sul-coreano Jaha Koo. E é também o aspecto que mais projeta contradições entre a forma artística e a crítica engendrada, já que a moldura teatral de sua obra parece corresponder a uma estética moldada justamente para atender a certo horizonte de expectativa dos mercados da arte e dos festivais.
Ciente desse impasse, Tiziano Cruz explora, em sua dramaturgia, uma metacrítica irônica acerca da relação eu-outro que estabelece junto às plateias de teatro contemporâneo para as quais se apresenta. “Sei que muitos estão aqui para ver quem é o coya, o indígena que está na moda no teatro, que viaja para o primeiro mundo, que fala nos festivais”, provoca, trazendo à tona o questionamento sobre que lugar ocupamos, nós, espectadores brasileiros, numa cidade como São Paulo e dentro de uma mostra de teatro contemporâneo como a MITsp.
Dialeticamente, a cena final de Meus irmãos é a que mais rompe com a dinâmica e a estética em alguma medida previsíveis das cenas anteriores. Nela, Tiziano Cruz reparte, com a plateia, pães que foram preparados conjuntamente com pessoas em situação de rua da capital paulista. Aqui, a dimensão simbólica se entrecruza com a dimensão contextual para aludir ao próprio ethos comunitário oriundo da região de onde vem o artista. Com esse gesto, Tiziano busca reconstruir, ainda que efemeramente, uma semelhante dinâmica comunitária nas cidades onde se apresenta.
A considerar as duas imagens-síntese que me acompanharam nessa travessia pelos primeiros dias de programação da MITsp – o desdobramento da história e o reencantamento da democracia – finalizo minha experiência com a sensação de que, a despeito das inevitáveis contradições que acompanham esse tipo de processo histórico, a Mostra Internacional de Teatro tem servido como espaço poderoso para fertilizar e sedimentar as transformações que vem ocorrendo tanto na sociedade brasileira quanto em outros países.
Embora atenta ao alerta que a escritora Jota Mombaça nos faz em sua aula-magMa apresentada no último fim de semana da mostra (vista por meio de transmissão no YouTube) – quanto aos riscos de uma suposta “aparência da emancipação” que ajudaria a afrouxar as demandas por emancipação efetiva na esfera pública atual –, termino meu texto esperançosa de que os atos de desdobrar a história e reencantar a democracia vistos nos acontecimentos aqui analisados sejam apenas a superfície de um movimento mais profundo capaz de implodir as camadas tectônicas que hoje tornam difícil a tarefa de superar as contradições de nosso tempo.