Acordes conectados em corpos coletivos: uma experiência de apreciação do espetáculo sul-africano Broken Chord [Acorde Rompido]

Acorde Rompido. Foto Silvia Machado

Por Alexandra Gouvêa Dumas1

Anuncio, de antemão, o meu desejo direcionado a quem for ler este texto para que essa experiência de leitura seja compreendida como uma partilha de um percurso perceptivo e que se estabelece em uma culminância da minha apreciação da obra Broken Chord [Acorde Rompido] que aconteceu na 9ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) em 2024. Há um antes e alguns entre do meu ver que eu gostaria de compartilhar por achar que assim posso fornecer elementos compositivos da forma como eu processo essa experiência. 

O meu enlace com esse “acorde” veio, de imediato, quando li a programação da MIT e soube que se tratava de uma produção da África do Sul. Logo entrou para a minha “listinha”, intitulada “quero ver/tenho que ver”. O primeiro ponto, pautado na geolocalização do espetáculo, encontra eco no meu corpo, que, como professora e pesquisadora negra, vem desenvolvendo um processo de busca, questionamentos e apreciação de narrativas que se voltam para aspectos históricos e poéticos das culturas negras, sobretudo em formato cênico. 

O meu interesse se alinha com contatar narrativas críticas direcionadas ao processo colonizador e que constroem uma “reinvenção” de fatos numa perspectiva mais digna e polifônica, em contraponto à “história única”, branco-hegemônica, como sinaliza a nigeriana Chimamanda Adichie. Um elenco de perguntas orienta minhas pulverizadas impressões que tento aqui confluir com apoio nas produções intelectuais de mulheres negras: seja pela via da “fabulação crítica”, de Saidiya Hartman; pela “ortografia do vestígio”, como nos aponta Christina Sharpe, ou em fricção com as instigantes e adequadas reflexões propostas por Leda Maria Martins, que nos oferecem chaves de leitura para o corpo e as cenas negras em geral. 

Das poéticas que vejo, uma indagação (das várias que me perseguem) me salta frequentemente, sendo esta ora exposta: em que medida histórias dominantes, difundidas numa perspectiva antinegra, vêm sendo reinventadas criticamente em corpos e criações negrorreferenciadas em estado cênico? Dessa questão, desdobram-se outras: como vêm sendo construídos cenicamente posicionamentos políticos e estéticos relacionados à reontologização de corpos negros? Como vem se dando o reposicionamento do corpo negro em cenas desvinculadas do ou revinculadas ao processo permanente reproduzido no eficaz e conveniente sistema colonizador de racialização de corpos? Como ser/fazer um “outro” cênico tendo sido gestado em um processo (o colonizador) que intimamente nos entranha mesmo nos estranhando? Algumas respostas vêm sendo dadas nos palcos e em processos produzidos por coletivos, sobretudo os negros, ou mesmo em cenas individuais. 

Percebemos, recentemente, no Brasil, uma inserção, na pauta das programações de eventos renomados, da discussão decolonial que traz no seu bojo questões de gênero e de raça. Não sei qual o critério determinante nesses processos seletivos; contudo, considerando essa relevância, creio que são incluídos para promover uma discussão ou quiçá um esboroamento dos modelos que se pautam na perpetuação da colonização e nas cenas teatrais que historicamente também contribuíram para a efetivação dos princípios de dominação eurobranca em territórios colonizados. Conseguiremos, criadorxs negrxs, quebrar esses acordos ou seremos os sons dissonantes de um coro supostamente harmônico nas cenas que intentam nos reinventar? 

O derramamento de perguntas para iniciar esta prosa pretende posicionar a minha percepção em um contexto em que perguntar, percorrer e reinventar as próprias perguntas tem sido um roteiro de grande motivação para reflexão sobre a complexa cena negra no Brasil. Encontrar pontos de contato das cenas negras brasileiras com Broken Chord [Acorde Rompido], espetáculo de abertura da MITsp 2024, foi uma espécie de ampliação da minha base diaspórica. Mas acho que é chegada a hora de colocar em exposição algumas informações acerca do espetáculo em si. 

A criação, assinada pelos sul-africanos, dois homens negros, o dançarino e coreógrafo Gregory Maqoma e o compositor e músico Thuthuka Sibisi, parte de um fato histórico pouco difundido. A sinopse apresentada no catálogo resumido da MITsp diz: “Entre 1891 e 1893, um grupo de jovens cantores africanos chamado de The African (Native) Choir viajou de barco rumo à Grã-Bretanha, ao Canadá e aos Estados Unidos. Formado pela elite negra educada por missionários, ele tinha o objetivo de arrecadar fundos para uma escola técnica em Kimberley, na África do Sul” (MITSP, 2024, p. 23). Sim, essa é, ao que parece, uma estranha e familiar narrativa: africanos são estimulados a sair de seus territórios para arrecadar dinheiro em países ricos da Europa e da América do Norte, sendo essa ação regida por homens (no caso, missionários) brancos. 

Acorde Rompido. Foto Silvia Machado

Essa história veio à tona através de uma exposição fotográfica que revelou ao público imagens desse episódio. Jornais da época, de Londres, exibiam fotos em matérias que mostravam o “coro nativo” com um figurino que evidenciava o imaginário britânico sobre a cultura sul-africana. Em uma das fotos, o coro está vestido com roupas de estilo vitoriano com pitadas do exotismo projetado pelos olhares britânicos, com a inserção de uma pele de tigre para compor a cena fotografada, demarcando o exótico, inclusive para os próprios sul-africanos, desde quando esse animal, de ordem, não habita seus territórios. No repertório, havia música “africana”, música clássica ocidental e hinos cristãos2. A viagem saindo da África do Sul foi de barco, mas não se encontram dados históricos a respeito desse percurso. Sabemos que os rastros no mar se diluem, afundam e também fazem emergir memórias. A diluição dos nossos passos nas águas e nos mares não necessariamente apaga o trajeto, mas pode, sim, ampliar, transformar e conduzir para novas ondas e formas de se perceber e conceber os vestígios. 

Tratando da nossa negridade e existência, Christina Sharpe nos convida a refletir: “Se […] pensarmos a metáfora do vestígio [wake] na totalidade de seus significados […] e unirmos o vestígio ao trabalho para que possamos fazer do vestígio e do trabalho de vigília nossos modos analíticos, poderemos continuar a imaginar novas maneiras de viver no vestígio da escravização, nas vidas após a morte da escravização, para sobreviver (e mais) à vida após a morte da propriedade” (2023, p. 41-42). O espetáculo Broken Chord [Acorde Rompido] vai escavar esse mar e em suas histórias volta-se para um fato acontecido e faz dele um elemento propulsor de uma reinvenção poética negra, evidentemente construída pelo e para o corpo. 

Em suas reflexões no âmbito das oralituras, a pesquisadora Leda Maria Martins diz que “O gesto não é apenas narrativo ou descritivo, mas fundamentalmente performativo. O gesto, como uma poiesis do movimento e como forma mínima, pode suscitar os sentidos mais plenos” (2021, p. 86). Para mim, assim soa: um espetáculo que remexe a história e elabora respostas-perguntas tendo o corpo como elemento conector entre o que se constrói criativamente, o que se passa no palco e o que se pretende atingir na plateia. E assim, perguntando, cria movimentos em refutações sinuosas ou em movências diretas acerca do processo colonizador… O corpo, o coro, os corpos passam por um complexo arranjo de vozes, sons, músicas, gestualidades, batuques… Cada pedacinho de cada coisa parece ser uma síntese intensa, integrada e inteira de uma narrativa contada com muito cuidado estético, numa polifonia imbricada e elaborada de linguagens. 

Não se busca uma verdade histórica, mas talvez aí a conversa com Saidiya Hartman seja uma lente sobre a criação. Para a autora, ao “iluminar a imaginação radical e a anarquia cotidiana das meninas de cor”, ela direciona sua escrita tensionando os limites dos documentos, colocando-os em diálogo com a especulação do “que poderia ter sido”. Dessa forma, a especulação criativa de Maqoma e Sibisi se traduz em provocações tão simples quanto complexas. 

As perguntas surgem, contudo não são apresentadas em afirmações absolutas, mesmo quando assertivas ecoam como uma ampliação do grande problema que foi e é o processo colonizador sul-africano ou mesmo o brasileiro. É acentuado de forma verbal/corporal/visual nas cinco pessoas do “coro nativo”, o qual propaga: “Não podemos apagar a história, mas apenas recordá-la ou esquecê-la… ou reinventá-la”. 

Essa breve partilha reflexiva me conduz a um distinto tempo-espaço e me desloca para a memória que tenho de um outro espetáculo sul-africano. Em estadia de pesquisa em Paris, no ano de 2015, fui impulsionada pela motivação territorial, em mais uma das minhas escolhas atravessadas pelo crivo “é da África do Sul”, a assistir à performance-instalação Exhibit B, do artista sul-africano Brett Bailey. Muitos posicionamentos foram direcionados a essa obra, e uma das questões apontadas pela exposição de “erros” nela localizada vinha do fato de ser uma criação de um homem branco voltada para narrativas históricas de pessoas negras. Não entrarei na discussão que comumente evoca o tal “lugar de fala”, que é, muitas vezes, interpretado de forma equivocada como sendo a esquiva preferencial de rejeição do diálogo e dos bons embates argumentativos. O que me interessa aqui é elaborar minha percepção e partilhá-la como subsídio para propulsões reflexivas. 

A priori, a apreciação desse espetáculo veio coberta por um ambiente prévio de tensão policial e popular. Estava demarcada uma insatisfação do movimento negro local, parisiense, em consonância com mobilizações de outros países, que denunciava uma exposição de corpos negros em situações de opressão que poderiam reforçar uma já frequente e cotidiana naturalização do sofrimento negro. Tentei, previamente, não acompanhar as notícias que envolviam essa criação como tento ainda hoje quando planejo assistir a algo. E, assim, fui apreciar os 12 quadros vivos do artista sul-africano Bailey… A sensação que fui tendo à medida que fui me colocando diante de cada “quadro” foi que eu estava submetida a tecer um alinhavo crescente que fazia com que o meu estado de emoção crescesse numa escala gradual de dores. Estas não necessariamente já vividas por mim, mas como um elemento histórico, racial, sim, me constituíam. Enquanto eu me deslocava, como em uma ação bastante comum quando estamos em uma exposição convencional de quadros, a apreciação de situações protagonizadas por corpos negros em estado de sofrimento extremo, com pouca, porém expressiva movimentação corporal, aumentava a minha comoção, o que me levava para um lugar de solidão e para um estado emocionalmente desconfortável e igualmente paralisante. No “quadro” final, diante de um coro com vozes bem harmonizadas apenas com as cabeças negras visíveis sobre uma mesa de jantar, o mosaico de cenas exposto ali tinha sua culminância, finalizando a exposição humana, a do criador e a dos corpos negros em sofrimento. Meu corpo ali trafegou num cortejo apreciativo, e, no momento final, eu me encontrava muito tocada, mas estacionada, sem saber elaborar sentimentos e percepções… Esse estado se instalou, corroborando a evidência de um sentimento de autopesar. Eu me via ali retratada, porém sem ser um espelho de reflexões, apenas de reflexos fugazes. 

Broken Chord [Acorde Rompido], sem desconsiderar o meu diferente contexto pessoal, temporal e atual, promoveu maiores deslocamentos em mim, mesmo tendo assistido a ele sentada, numa perspectiva frontal da cena. Meu corpo via e reagia à dinâmica apresentada no palco. Senti até tremores que pareciam me fazer dançar/pensar no momento concomitante à apreciação, frente às linguagens que chegavam até mim concretizadas em vozes, interpretações, gestualidades, olhares e tudo o mais que envolvia e promovia os corpos em cena. Entre frases, diálogos musicais, escutamos ser proferido: “Você acha que estou aqui só para ser uma boa negra? Só para cantar para você? Mas na verdade estou aqui para perturbar e desmantelar…” 

Acorde Rompido. Foto Silvia Machado

Explicitamente, o espetáculo me colocou frente a posicionamentos que transcenderam o binarismo reducionista e opositor muitas vezes expresso em bem versus mal, preto versus branco, europeu versus africano, colonizador versus colonizado. Em dado momento, é dito em cena: “Vieram os missionários tomar o que era meu, e eu aceitei o que era deles”. É posta uma ação que envolve os que colonizam e os que são, forçadamente, submetidos a esse processo. O que foi aceito passa a ser seu também. Ao se conectar com as outras posses culturais, muito do que seria do outro pode ser processado – até virar resistência… E, nesse campo, o da resistência, algumas ações são processadas em rupturas e em movimentos, ou mesmo em integração com esse outro e que passa também a compor o eu-negro. 

Uma das cenas de Broken Chord [Acorde Rompido] me faz destacar essa percepção. O grupo maior do coro, composto por cerca de 14 pessoas não negras, vestido de preto, assume brevemente um destaque na cena, quando começam a dançar e reverberar no chão as pisadas de uma dança referenciada na música eletrônica. O grupo formado pelos personagens, os viajantes do coro africano, capta a batida e propõe, nas pausas dos tempos rítmicos produzidos pelos não negros, um preenchimento que completa, altera e engrandece os sons, a música, a dança, a cena. Aceita alterando, recriando, resistindo…

O jogo em cena é, sobretudo, coletivo. Embora tenha Gregory Maqoma como um corpo em evidência entre os cinco personagens viajantes, é gestada, no todo, uma unidade coletiva. Na cena inicial, por exemplo, Maqoma protagoniza um solo. Segurando um tubo branco, girando-o, produz um som de vento, sugerindo um deslocamento, quem sabe uma navegação. Na sequência, o tubo branco é preso e atado por ele ao seu próprio corpo, e, com movimentos repetidos de apertar cada vez mais o nó, o dançarino promove uma espécie de espasmo respiratório e corporal, apresentando uma feição de aflição que vai se intensificando em uma movimentação rítmica e sinuosa. O coro instaura um canto de lamento e tensão. Atado na região mediana e central do corpo pelo tubo branco, Maqoma movimenta-se, se aproximando dos demais membros do “coro nativo”. Ali acontece uma intervenção como “resolução” da cena, quando um dos colegas do coro se direciona ao corpo em desespero, desata e afrouxa o nó, fazendo com que Maqoma se desvencilhe do objeto que o oprime e instaurando, logo em seguida, um clima-caminhar rápido, leve e suave. O deslocamento até o outro reposiciona o indivíduo em categorias de pertencimento coletivo. 

Essa cena, já sendo a primeira, foi muito emblemática na minha percepção global do espetáculo. São poucos os recursos cênicos explorados, como o uso de objetos em cena, por exemplo. Além do tubo branco citado, algumas malas aparecem, indicando a chegada ao solo europeu. Há um protagonismo do/s corpo/s, e, mesmo sendo o espetáculo anunciado como sendo de despedida dos palcos, como dançarino, de Gregory Maqoma, acho interessante ter sido feita uma escolha pela presença coletiva em cena, explorando apenas eventualmente o protagonismo individual do dançarino. 

Nos 60 minutos de duração de Broken Chord [Acorde Rompido], senti que o palco foi preenchido, prioritariamente, com o discurso direto produzido pelos corpos, seja pelas vozes, seja pela gestualidade. É como se ali fosse forjada uma epistemologia cênica fundada em experimentações e elaborações corporais negras, individuais e coletivas, sonoras e de movimentos, que inscrevem essa produção sul-africana em um constructo ancestral/atual em que a pulsação da vida se torna materializada em beleza, envolvimento e inclusão. 

A professora e pesquisadora Leda Maria Martins diz que “Para adquirir a categoria de belo, há que ser necessariamente um benefício do e para o coletivo” (2021, p. 71). Tomo de empréstimo essa frase porque penso que, para mim, ela bem pode ser aplicada ao espetáculo em questão. O nome Broken Chord [Acorde Rompido] pode ser uma perfeita designação do fato histórico e sua respectiva reinvenção artística. Porém, em mim, na apreciação da obra e na conexão estabelecida com o meu corpo, foram construídos uma comunicação ininterrupta, uma harmonia instigante e um coro que me fez ser voz – mesmo que atuando na aparente e passiva escuta e visualização de corpos.

1 Professora do Departamento de Fundamentos do Teatro, da Universidade Federal da Bahia.

2 Fonte: The forgotten story of The African Choir that inspired Broken Chord. Canal To Live. Disponível em: https://youtu.be/S7TVJHbwimE?si=Ot10c1H0tjU8CbQA.

Autoras e obras citadas:

HARTMAN, Saidiya. Vidas Rebeldes, belos experimentos: histórias íntimas de meninas negras desordeiras, mulheres encrenqueiras e queers radicais. São Paulo: Fósforo, 2022.

MARTINS, Leda Maria. Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021. 

SHARPE, Christina. No vestígio: negridade e existência. São Paulo: Ubu Editora, 2023.