Quem tem o direto de dizer o que é arte contemporânea? – Crítica do espetáculo Eles fazem dança contemporânea, por Michele Rolim

Em cena, num cenário que reproduz o tradicional cubo branco de galerias de arte, o bailarino e performer Leandro Souza procura a relação entre três elementos: seu corpo; a fala “Eu sou suficientemente negro para você”, repetida diversas vezes, em inglês na maior parte do tempo; e um objeto cênico – uma pilha de cabelos sintéticos. 

O espetáculo Eles fazem dança contemporânea, que integra a programação da MITbr, tensiona a descolonização da produção de arte e do conhecimento.

A performance é uma tentativa de combater a necropolítica pela arte. O termo necropolítica – debatido no seminário da MITsp, na mesa Elaborações do presente: políticas da morte e imaginação política – parte da obra do filósofo, teórico político, historiador e intelectual camaronês Achille Mbembe. Para ele, trata-se do poder que o Estado tem de ditar quem pode viver e quem deve morrer. E o Estado entende que quem deve morrer é quem não se enquadra no modelo branco e cisheteronormativo. Atualmente, a perseguição aos modos de existências fora deste modelo tem sido cada vez mais acirrada.

 

É nesse escopo que Souza nos pergunta, através da repetição “preto/contemporâneo o bastante”, enquanto movimenta e arrasta os cabelos pelo chão. Um cabelo afro que exerce papel fundamental na construção da estética e identidade.  O black power ésímbolo de luta e resistência, historicamente, dentro dos movimentos negros.  

Esse é um dos primeiros pontos que a performance busca: a desconstrução dos estereótipos raciais e um tensionamento com a hipervalorização da estética branca eurocêntrica. Que imaginário social, nós, brancos, esperamos encontrar quando vamos a um espetáculo de um homem negro?

O antropólogo Osmundo Pinho, no artigo Qual a identidade do homem negro? nos diz que o corpo negro masculino é fundamentalmente corpo-para-o-trabalho e corpo sexuado. Em Eles fazem dança contemporânea vemos um corpo performativo valorizando uma estética negra decolonial.

Outra questão que o espetáculo levanta diz respeito ao sistema da arte e suscita a seguinte questão: a quem é dado o direto de dizer o que é arte?

No sistema das artes capitalistas, são as instituições que validam o que é arte. Os artistas disputam o capital simbólico, cultural e social.

Em uma sociedade como a nossa, que tem como cerne o racismo estrutural, quem ocupa os espaços de poder nessas instituições corresponde, em sua maioria, ao modelo branco e cisheteronormativo. Modelo este que reproduz regimes de invisibilidade em relação a artistas negros e negras, dentro dos circuitos oficiais e legitimadores da produção cultural. Em suma, há, socialmente, uma divisão daqueles que seriam considerados como sujeitos políticos e aqueles que estariam fora do jogo como aborda o filósofo francês Jacques Rancière em A partilha do sensível. Sobre quais condições os indivíduos se tornam dignos ou não de visibilidade?

O trabalho discute, também, questões não apenas ligadas à representatividade, mas também ao seu formalismo, que sugerem a reflexão sobre a condição da obra de arte na contemporaneidade. Em Sociedade sem Relato: Antropologia e Estética da Iminência, o argentino Néstor Canclini afirma que estamos vivendo  um momento em que a arte desfruta de uma condição “pós-autônoma”. Ao ter cumprido um percurso histórico que assegurou um conhecimento produzido sobre o que lhe é específico e próprio, a arte pode transitar por outros campos de saber e das práticas sociais, indo buscar recursos e estratégias de ação poética e até mesmo objetivos e objetos de conhecimento em outras disciplinas (sociologia, psicologia antropologia/etnografia, engenharias, matemática, química etc.) e, também, nas práticas sociais (ativismos políticos, sindicais, ações comunitárias etc.). Souza atua no limiar entre linguagens, transita entre a dança, as artes visuais e a performance, também possui no seu trabalho um ativismo político ao (re)colocar em cena a questão do racismo no contexto da arte contemporânea.

Esse giro transdisciplinar da arte é característico de uma produção que já não busca a distinção de outras produções (busca que caracterizou a autonomia construída na Modernidade), mas resulta numa arte “que já não se parece com arte” – nas palavras do criador do Happening, Allan Kaprow, muito mais focada na experiência e na intervenção direta nos processos de vida e de sociabilidade.

Com este trabalho, Souza problematiza o imaginário social da branquitude, ao propor outras formas de se fazer arte e de pensar possibilidades estéticas. Para atingir isso, ele não se prende a conceitos pré-estabelecidos, e tampouco se submete à fetichização do corpo e da arte negra.