Alf vai ao teatro – Crítica do espetáculo Há mais futuro que passado, por Daniel Guerra

Mas e se você fosse um homem branco já bem entrado na melhor idade chamado Alfredo M., paulistano, eterno morador da Avenida Barão de Limeira, ali do lado da Folha de São Paulo, que todo santo dia, na hora exata do toque da sineta de fechamento do jornal (no qual trabalhou a vida inteira — até alguns anos atrás, quando foi aposentado — como editor de seção e jornalista cultural da parte de cultura naqueles tempos áureos em que a moçada pós-concretista abalava o mundo das artes e naqueles tempos áureos em que “existia crítica de verdade”), bota a coleira no seu Dachshund de nome Costelinha (porque ele é dos tempos em que ainda não se batizava animais com nomes humanos) e sai pra passear e, quando volta, vai dormir tranquilo o sono dos justos e dos esquecidos-por-vontade-própria. Mas hoje, dia 09 de agosto de 2022, em vez de passear com o seu Costelinha na hora exata dos sinos da Folha de SP, ele (você) resolve ceder finalmente ao pedido de uma velha amiga que não vê há milênios e sai para ver uma peça de teatro com ela.

A peça se chama Há mais futuro que passado e você (ele) não consegue esconder o risinho de ironia autoinfligida quando a sua velha amiga te lê o nome da peça lendo a sinopse (que está disponível e com + info. neste site da MITsp, aqui) no celular. Ela percebe que o título da peça te feriu um tanto no seu âmago existencial, mas finge elegantemente que não vê tal fato e vocês, finalmente, depois de atravessarem quilômetros cidade adentro para chegar num teatro que, para você, parece perdido no meio do nada, sentam-se nas poltronas e veem três mulheres no palco começando sem cerimônia teatral alguma a falar num tom que você (ele) reconhece como o tom de palestrantes muito-conscientes-de-si-e-do-mundo-e-de-tudo-e-de-todos. Esse tom te lembra o tom das peças de 1960/70, principalmente aquelas em que os atores não gritavam e não tiravam a roupa, aquelas em que os atores levantavam punhos e diziam frases políticas de conscientização social.

As três, com muita confiança, exalam confiança para todos os espectadores, que afinal estão sempre metidos numa espécie de confusão entre estar desconfiados e estar querendo por-tudo-no-mundo confiar em alguma coisa. Então ele segue muito bem a torrente inicial de informações dadas pelas palestrantes, atrizes muito boas, aliás, ele pensa, pensando também que nunca mais tinha visto atrizes com a dicção tão boa e tão clara, ele pensa, ele, acostumado a ver toda ocasião artística pós-anos 1960 como mera afetação niilisto-tropicalistíca sem-pé-nem-cabeça, ele, que agora fica admirado com esta segurança empostada mas nunca afetada que nunca mais tinha visto em nenhum ator desta cidade, cidade esta que agora havia se entregado, segundo ele (você), a “uma balbúrdia semi-revolucionário-comportamental & colorida & emprestada dos yankees”. E segue com prazer, vez ou outra balançando num “sim-sim” a cabeça branca, a torrente inesgotável de informações dadas pelas três “excelentes atrizes teatrais”.

As três mulheres se revezam em ler cartas de mulheres para mulheres, ler trechos brilhantes de Virginia Woolf, apagar e acender luminárias de mesa, mexer no MacBook, apontar para um mapa da América e falar coisas absolutamente sensatas e inescapável e cruelmente reais, tais como o apagamento feminino que ele presenciara tantas vezes na própria redação do jornal, fosse no escritório, fosse nas notícias que ele mesmo editava dentro do jornal. Ele balança a cabeça afirmativamente para tudo isso. Tem prazer. Teatro bem-feito. Imagina que todos os bonecos do “bom e velho” jornalismo cultural estão aplaudindo de pé dentro da sua cabeça branca. Olha para o lado e sente um prazer extra porque sente que sua velha amiga também tem bonecos do “bom e velho” jornalismo cultural aplaudindo dentro da sua cabeça de cabelos vermelho-borgonha.

Toda vez que as mulheres falam daquelas grandes mulheres artistas da América Latina, ele suspira de nostalgia, ao se lembrar, por exemplo, do dia em que encontrou por acaso com a Li (Lygia Clark) no Halim. Ele tinha ido comer um árabe com seu irmãozão Dodô (Haroldo de Campos), que segundo Alf (assim o chamava Dodô), era afinal de contas o “nosso um mero homem Homero”, aliás sendo este o título de uma matéria épica que lhe rendera lauréis dentro e fora do jornal.

Lembra da extrema emoção que foi ver, ao final do jantar, a Li fazendo esculturas de pão sírio e homus para deleite modernista do garçom Jacó, aficcionado pelas vanguardas ocidentais. “A Li é mesmo demais”, todos falavam. “Que mulher demais”, todos falavam. E a Li agora estava ali, ressuscitada por aquelas três majestosas mulheres absolutamente seguras de si falando aquelas coisas tão interessantes de se escutar, tão verdadeiras, tão reais e tão edificantes. E é numa dessas de mexer a cabeça que ele começa a ser vítima de uma espécie inconsciente de sonolência que pessoas da idade dele não podem mais reprimir, e então a amiga dele olha para o lado e vê que ele está entre dormir e não dormir. Ele, olhando para a amiga, se apercebe finalmente que está nessa de dormir e não dormir e resolve acordar.

Ora, a peça está tão boa, por que diabos isso agora? Começa então a se dar conta de que, apesar da pertinência das coisas faladas e do prazer auferido do tom daquelas vozes e da elegância pseudo-precária de toda a encenação, “nossa mãe” ele pensa, talvez ele esteja muito velho pra isso. Pra isso o quê? Com certeza não para a qualidade da peça, nem para os temas que essa peça de qualidade traz à baila. É aí que todos os bonecos do “bom e velho” jornalismo cultural, há tanto tempo metidos na sua cabeça, resolvem se sentar nas suas poltronas e, numa posição de pensadores de Rodin, começam a criticar, ou seja, a pensar. E o que os bonecos começam agora a pensar é que talvez o que os tenha cansado nesta torrente inesgotável de pertinentíssimas informações político-sociais não seja obviamente as informações em si, mas a estrutura do espetáculo e a escolha poética geral do espetáculo, ou seja, o seu tom.

Os bonecos, então, sentados e pensando, pensam se este espetáculo não seria a representação de um sintoma estético. Sim, porque ele  lembra que, na época do pós-concretismo, ele havia criado esse tipo de classificação de uma obra, ou seja, de isolar nela sintomas estéticos que uniriam a obra ao mundo-da-arte do seu tempo. Toda peça teria seus sintomas. E qual é o sintoma desta peça, os bonecos pensam. E chegam à seguinte conclusão: seriam dois os sintomas estruturais desta peça, que podem aliás ser vistos em outras peças contemporâneas que ele tinha visto este ano (depois de ter vencido a preguiça). Esses dois sintomas seriam os dois polos estruturantes da peça-como-um-todo: 1) o que ele nomeia, agora, de datocracia, ou seja, o fato de dar todo-poder às informações; e 2) dispositivos de fazer emocionar.

Esses dois polos, é claro, seriam solidários entre si. Enquanto as informações seriam passadas na função de formar um pano-de-fundo absolutamente confiável e seguro ao espectador, as bolhas-de-emoção (irrompidas aqui e ali por meio de, é claro, música, canto & histórias-pessoais-não-necessariamente-das-atrizes & arrebatamento por meio da exposição-à-crueldade-humana) serviriam para levar este mesmo espectador à sempre-salvadora aderência ao espetáculo. “Tudo nos mais conformes”, afinal. Nada de tão extravagante. Eis uma fórmula que ele já tinha visto em outras partes. Mas esta funciona bem, ele pensa. É belo, é belo. Então, novamente, por que este meu cansaço, para além da idade?

Ah sim, os bonecos se põem a pensar uma vez mais. E lembra do seu eterno cansaço de tanta informação. Talvez tenha sido esse, até, o principal fator para a aceleração da sua aposentadoria na Folha. É muita informação, ele pensa. A gente tá jogado na informação. A gente não consegue mais pensar, metidos no fluxo imparável. Então vem um meme, o meme estoura no seu juízo e te faz emocionar. Aí vem mais uma torrente de informação, e você fica meio doido de novo. Aí vem outro meme, te pega pelo rabo da emoção, te joga na parede da empatia e te faz rir ou chorar. Aí você tem forças para mais uma torrente de informação outra vez, e por aí vai.

Então, ele conclui: a estrutura da peça é contemporânea não por ser um teatro-palestra, apenas, mas principalmente por ter essa estrutura binária dividida entre muita informação + bolhas de emoção. Foi, assim, essa alternância que lhe fez divagar como um pêndulo, entre o sono e a vigília. Sim, talvez esteja muito velho para tudo isso, pensa, enquanto ele e sua amiga saem do teatro e pedem o taxi. Ela: “Gostou?”. Ele: “Gostei, mas às vezes fiquei meio cansado”. Ela: “Pois eu não. Achei tudo muito urgente e necessário”. Ele: “Urgente e necessário? Mas aqui tá dizendo que a peça foi feita há seis anos”. Ela, meio irritada por ser ter sido pega assim, nesta retórica semi-irônica já bem conhecida de seu amigo, simplesmente responde: “Ah, meu querido. Se liga. Pense nas mulheres que não têm nem metade da nossa idade. Ou seja. Segue sendo urgente e necessária, sim”. “Opa, o taxi chegou”.