Prazeres à distância? – Crítica do espetáculo História do Olho – Um Conto de Fadas Pornô-noir, por Lorenna Rocha

FistingBDSM.

Camming.

Gangbang.

Penetração.

Sexo oral.

Anal.

Hardcore.

Masturbação.
Enforcamento.

Videos caseiros.

Amadores.

Profissionais.

Um título controverso inicia esse texto. Como poderia, um espetáculo com interesse em tensionar o universo do teatro e o da pornografia, se estabelecer “à distância”, quando, em comum, as duas linguagens partem da dimensão do encontro? Do contato? Da troca? Apesar da explosão do corpo, do investimento em sua dimensão vibrátil e da explosão mobilizada por uma coletividade frenética, pareceu interessante investigar as barreiras e afastamentos produzidos por algumas escolhas de História do Olho – Um Conto de Fadas Pornô-noir, dirigido por Janaína Leite.

Primeira questão: a estrutura do palco à italiana

A dramaturgia de História do Olho deriva do melodrama ao nonsense. Livremente inspirada no livro de George Bataille que dá nome à peça, sua estrutura é marcada pelas pequenas histórias compartilhadas pelas/us/os performers (e seu vínculo com à pornografia) e pelos contos presentes na publicação de 1928, de modo a nos fazer “entrar em contato” com as múltiplas formas de prazer e com as possibilidades de se proporcionar e despertar desejos. O coletivo dá espaço às histórias individuais e todos os relatos caminham para a explosão do corpo. A musicalidade intensa e experimental da Banda do Olho amplifica as movimentações inquietas que riscam o palco.

No entanto, a posição do público na fruição do espetáculo – à italiana – parece fazer da festa, algumas vezes, um rolê não compartilhado entre artistas e público. Como fazer as espectadoras vibrarem com esse “freak show”? Alguns jogos como “verdade ou consequência” ou pedir para ver a mão das pessoas que estão sentadas de frente ao palco criam um clima de tensão, proporcionado, primeiro, pelo próprio sexo, e, segundo, pelo risco da interatividade nos colocar em alguma situação “constrangedora” ou “não esperada”.

Uma frase que chamou atenção também nesse sentido é quando um dos performers, ainda no início do primeiro ato, afirma que o teatro não seria um lugar das pessoas se masturbarem (apesar do conteúdo do espetáculo), mesmo que elas pudessem fazê-lo, caso quisessem. A frase de tom quase moralista parece suspender com o jogo entre o “real” e a “ficção” proposta pelo próprio espetáculo. Além disso, se manifesta com algum senso de controle que o grupo gostaria de ter em relação a seu público tão distantemente posicionado. Não que a frase vá definir de todo o comportamento da plateia, mas por que não deixar isso em aberto e redistribuir o risco também para si?

Segunda questão: a performance de perfuração

No segundo ato, há uma performance de perfuração com um grupo de pessoas convidadas que não estão no elenco da obra. Primeiro, nos convidam até o centro do palco, para formarmos uma roda. Em seguida, sendo auxiliada a vestir uma roupa de toureira, uma das performers conta a história de uma tourada. A relação entre sangue, prazer e dor é estabelecida e vamos acompanhando de perto o profissional cortando as costas do homem branco que está à nossa frente. O momento que demora alguns consideráveis minutos para se concretizar, e termina com uma velocidade inversamente proporcional, apesar de criar certa tensão e expectativa por seu efeito visual, a ausência de relação entre público e esse performer em específico deixa o momento desconectado do conjunto. Mesmo que o coletivo de atores, atrizes e atorus cantem e toquem instrumentos partilhando a atividade, a sequência produz uma desconexão significativa na continuidade do espetáculo. Além disso, somos solicitadas a voltar aos nossos lugares, para acompanhar um plano-sequência que vai ser exibido ao vivo numa plataforma de camming. Por que é o sangue que precisa ser “visto de perto”?



O que a matéria do sexo, do erótico, do pornográfico atiça no palco?

Sua dimensão performática, em cena, teria finalidade de nos gerar tesão?

Ou de produzir desejo?

Existe perigo quando o “real” do sexo está em cena?

A fantasia da(u/o) outra(u/o) provoca algo em nosso próprio corpo?
Pode-se confrontar o desejo da(u/o) outra(u/o)?
Levar a pornografia ao palco pode correr o risco de sacralizá-la?

Há limite entre o abjeto e o fascínio?
Há fragilidade no explícito?

Qual perigo do real a peça tem em relação a suas(eus) espectadoras(es/us)?

Como criar relações mediadas pelo erótico entre público e performers?

Poderíamos nos masturbar durante a peça?

Sendo pornografia a matéria do espetáculo, o que há de espaço para aquilo que não foi previsto por ele mesmo?

Terceira questão: a (não-)presença da diretora em cena

Em Stabat Mater, Janaína Leite performava com uma máscara branca. Nos momentos de horror ou de relação com o erotismo, a persona figurava momentos assombrosos, tensos ou de sexualidade amplificada, sempre na tensão entre o terror e o desejo. Em História do Olho, Janaína Leite só entra em cena no final, fazendo a leitura de seu trecho preferido do livro de Baitalle, a epígrafe que compartilha suas mobilizações de escrita. O corpo vestido da artista contrasta com a do conjunto de performers que até então estava em cena. Além de não expor seu corpo através da nudez, ela também não compartilha sua relação com o sexo.

Não que seja um problema, mas parece criar uma hierarquia ao final do espetáculo que choca com a “horizontalidade” e a “coletividade” elaborada durante o percurso dos dois atos. Intuo a dizer que há uma representação da diretora no espetáculo, justamente quando algumas(us) performers assumem essa persona já encontrada, por exemplo, em Stabat Mater. Ela se comporta nesse conto de fadas em certo tom professoral, alguém que orquestra o jogo, estando dentro e fora ao mesmo tempo. A escolha formal deixa a ver a marca de uma investigação contínua, prolongada, que está a perseguir os próprios códigos, sendo essa uma das nuances que mais chama atenção no trabalho de Janaína Leite.

Quarta questão: A falta de confronto entre os desejos expressos

Apesar dessa ligação entre indivíduo e coletivo, a tensão ou o questionamento em relação aos desejos compartilhados em cena parece não vir. Acontece algum tipo de “política de respeitabilidade”, na qual ninguém confronta o desejo do outro. É algo no tom do “isso existe e está tudo certo”. E não poderia ser diferente, claro. Mas o que falta, nesse sentido, é um embate corpo-a-corpo entre esses universos tão distintos que nos são apresentados. Parece, no limite, uma grande vitrine das possibilidades sobre a expressão da linguagem pornográfica. Mas, a morte e a violência por exemplo, matérias do próprio espetáculo, poderiam tensionar o ambiente cômico, freak show, exagerado, do espetáculo?

Quinta questão: Ponto de contato entre performance e narratividade

O primeiro ato de História do Olho chama atenção pelo modo como estabelece o jogo entre as/us/os performers e o público e o modo como apresentam o livro de Baitalle. Sempre em mãos, sabemos que elas/us/es irão se apresentar, falar sobre sua relação com a pornografia e ler um trecho preferido da publicação. Esse jogo se repete até o fim, exceto com Janaína Leite.

Esse cruzamento entre a leitura, a estrutura de encenação do conto escolhido e a ruptura com um jogo de improviso realizada pelas pessoas em cena cria um ambiente solto e implicado, entre os registros de linguagem distintos e as histórias pessoais das/us/os performers com as personagens do livro. É a primeira parte, inclusive, que mais instiga e parece romper com a estrutura distanciada entre esse nós, o público, e o coletivo do palco.