Para que um céu caia – Crítica do espetáculo Antes do Tempo Existir, por Daniel Guerra

  1. Quando, desde a minha cadeirinha na ponta direita do palco, testemunhei certos espectadores aparentemente amigos da equipe de Antes do Tempo Existir serem recebidos em cima do palco pelo Nome Próprio deles, e alguns, inclusive, pelos Nomes Próprios deles seguidos dos seus Próprios Sobrenomes, entendi — ou confirmei — que estava numa peça de teatro contemporâneo, sim, mas um teatro contemporâneo bastante regional, tal região, no caso, sendo a região cujo apelido, dado carinhosamente pela liderança indígena Ailton Krenak, é este: “terreiro do inimigo”, ao referir-se, na live que, segundo a equipe, deu origem ao espetáculo, à cidade de São Paulo. Mas acima de tudo, a frase que me ocorreu à lembrança, mais uma vez de Krenak, foi “Pra mim, teatro é coisa de grego”. A tônica sagaz, sábia, irônica e afiada da fala de Krenak, naquela ocasião virtual, foi a de pôr em questão justamente o viés problemático e controverso, estético, ético e político que surge quando o “mundo branco” tenta interpretar (ou impor) uma relação entre os povos indígenas e o teatro. Até porque não haveria como estabelecer com certeza, segundo ele, que, entre qualquer um dos povos indígenas — ao menos antes do tempo branco existir — tenha alguma vez havido qualquer manifestação artística parecida com o que o mundo dos brancos sempre chamou e insistentemente continua chamando de teatro.
  2. A paisagem inicial de Antes do tempo existir é bem conhecida para qualquer espectador dos tempos correntes: o ensemble cênico é uniforme e constante: atores, equipe e espectadores, todos quase sempre parecem ter vindo de uma mesma festa, e essa impressão ressoa do início ao fim do espetáculo.
  3. Tomemos por exemplo os figurinos desta cena regional contemporânea (universalizada e naturalizada) e percebamos a constância universal bem como a naturalização nacional dessa teatralidade (ou viralidade) radicalmente regional centro-sulista: casaquinhos corta-vento de cores berrantes ou estampas (alguns são da Adidas); no caso dos homens, meias pretas metidas quase até os joelhos; cores básicas e chamativas, todas juntas e sobrepostas num possível brega-chic, ex.: meia verde com calça rosa, tênis de corrida amarelo-cheguei e bandana floral (presume-se que os performers estejam sempre correndo contra o tempo ou fazendo uma espécie de jogging pós-dramático, algo assim); etc etc etc, a paisagem nós todos podemos ver por aí. Outra forma virótico-regional-universalizante é a seguinte: o bendito palco nu. E poderíamos elencar tantas outras.
  4. A pergunta que ressoa, para além do eterno “pra quê”, é: “de onde vêm essas formas”? De onde elas se impõem, e qual o tipo de destinação ético-estéticas delas. Se envolvêssemos nestas perguntas a curadoria, a crítica, o capitalismo, a mercadoria e a cena num só laço, talvez chegássemos a um bom resultado.
  5. Depois dos apertos de mão, abraços e Nomes Próprios nesse estranho hub ritualístico e simbolicamente investidor-de-identidade de uma tribo-da-arte — onde a maioria acachapante é branca —, começa-se o espetáculo, embora eu, como crítico, saiba que ele começou muito, muito antes, antes desse tempo-do-reino-da-arte existir.
  6. Sob a justificativa de um Tempo Mítico, a estrutura dramatúrgica deseja mostrar-se-nos fragmentária e espiralar, como se supostamente isto — exatamente esta forma exibida — fosse a representação estética de um Tempo Mítico (perdido), aliás esta sendo uma das nostalgias sintomáticas mais caras ao sujeito artista contemporâneo, e também, por que não, a sua mais nova mercadoria. Ficamos todos parecendo crianças. Mas não somos crianças. O contemporâneo, na arte, é sim sempre uma fantasia, mas não é porque ela é uma fantasia que precisa ser infantil. Acontece que esta dramaturgia espiralada ou fragmentária acaba transformando-se numa tempestade de imagens-referência um tanto quanto soltas e que, no fim das contas, acabam expressando muito menos a efetividade de um desejo de encontro real do que uma vontade-estetizante-de-cosmologia-ancestral e a reificação sublimadora de certa variante perigosa da nostalgia brancontemporânea.
  7. Eu não acredito, porém, que a vontade do artista seja nada. Eu acho que ela é sim, alguma coisa. E uma coisa até importante. Mas o acontecimento da cena, isto é, quando ele acontece, interpela igualmente a todos nós, espectadores e artistas. Não somos nós que o interpelamos. É ele que não espera por nós para nos passar a perna nas nossas certezas cristalizadas. Ele acontece e, acontecendo, gera ou deveria gerar problemas reais, e não adesões tour court, baseadas em códigos culturais e nichos artísticos.
  8. E se a vontade de Davi Kopenawa, exposta por Krenak naquela live geradora do espetáculo, era a de “desaparecer com a mulher branca”[1], devo dizer que ao menos na estreia a equipe infelizmente não conseguiu. E ainda que os dois co-criadores Baniwa, Denilson e Lili, apareçam por vezes de fato imantados numa “onçitude” (digamos, uma propriedade de onça mítica) esplendorosa, a branquitude insiste e persiste na forma e na estrutura geral da encenação.
  9. Dá gosto — ao ler as infos. no site da produção do espetáculo ou assistir à live — de perceber a propriedade que a diretora Andreia tem no convívio com a cultura indígena, numa pesquisa meticulosa e vivencia íntima. Mas em termos estéticos isso simplesmente não aconteceu.
  10. Caro sr. Krenak: não sei se o sr. concordaria: se um céu tem de cair para que outro se erga numa respiração telúrica, que caia com ele, também, certo mundo-da-arte.

A arte não é e nunca será inocente.


[1] Importante contextualizar esta fala. “Desaparecer com a mulher branca”, no meu entender, seria similar à palavra-de-luta “Matar o branco dentro de você”. Ou seja, só haveria como eliminar diferenças raciais, de gênero e sociais, se antes se elimina o sistema de opressão e o poder, encruados tanto na estrutura social quanto na estrutura íntima de cada sujeito. “Desaparecer com a mulher branca” seria, portanto, desaparecer com a branquitude, acima e antes de tudo.