Corpo ebulitivo – Crítica do espetáculo Trava Bruta, por Guilherme Diniz

            Em Trava Bruta, Leonarda Glück forja um manifesto cênico que discute as singularidades, as travessias e as inquietudes de seu corpo trans em um mundo minado. Além disso, problematiza a cisgeneridade na qualidade de norma, a partir da qual se constrói uma noção, violenta e excludente, de humanidade. O espetáculo recoloca as pesquisas da artista acerca dos atravessamentos e tensões entre distintas linguagens artísticas, como o teatro, a poesia, a música, o vídeo e a performance. Os discursos centrais deste trabalho solo partem da sua transgeneridade em contato com signos e imagens mobilizados no palco. A partir destas operações criativas, vamos formulando algumas questões: o que é brutalidade? Quem é bruta/bruto? A peça vai ressignificando estas palavras a partir tanto da realidade truculenta, quanto dos modos poéticos de insubordinação.

            Para o crítico Eric Bentley, o teatro, de um modo geral, se interessa menos pelo nu do que pelo despido. A ideia, discutível, parece, contudo, fazer sentido para a concepção de Trava Bruta. Leonarda articula uma série de artifícios para encobrir, revestir e ao mesmo tempo dar a ver o seu corpo. Uma projeção na lateral do palco exibe a própria performer transformada por filtros de Instagram, os quais constroem e reconstroem constantemente a forma do seu corpo. Uma instigante oscilação entre o que se revela e o que se oculta se sustenta. Ao longo do espetáculo, distintas peças de roupa, acessórios e artigos são utilizados, dando vida a um figurino inconstante, como um jogo de tirar e por. Nestes experimentos, acompanhados por uma dramaturgia combativa, a artista vai desmontando imagens estáveis ou universalizantes sobre o que é (ou pode vir a ser) um corpo. Uma de suas caracterizações muito se aproxima da clássica imagem do filme A pele que habito, de Pedro Almodóvar; e assim como no cinema, no palco de Leonarda a corporeidade é construção, um processo que não se reduz a lógicas biologizantes ou imutáveis. Ela mesma diz em cena: “nosso trabalho é travar a lógica binária, fácil e mesquinha, pobre de poesia, o compasso de dois tempos, e dar passagem à multidão dos sentidos, a diversidade dos números, a imparável mudança dos corpos e dos tempos”.

            As suas transformações e caracterizações cênicas geram ora estranhamento, ora uma sarcástica comicidade que nos convida a interrogar nossos próprios olhares orientados por tantas normatividades. Nada é poupado, incluindo a religião, os discursos científicos, o mito do Ocidente etc. Todos estes aparatos de poder que, direta ou indiretamente, violentam corpos como os de Leonarda são enfrentados. Existe aí uma postura antissistema. 

            Há uma grande contradição em Trava Bruta, entretanto. A artista afirma, em um determinado momento, que não pretende se ancorar no didatismo (embora ela alegue que o didatismo é, em alguma medida, importante) ou que não deseja atender às expectativas do que é um espetáculo criado por uma pessoa transgênero. Mas, surpreendentemente, ela acaba fazendo isso em uma boa parte do espetáculo. Munida de um microfone, Leonarda diz irônica e aguerridamente que “não vai” dar-nos estatísticas, números e dados cruéis sobre a violência transfóbica em suas várias formas de expressão. Mas ela não resiste e nos entrega as informações. Esses sãos os momentos dramaturgicamente mais frágeis. A ironia entre dizer que não vai falar e efetivamente falar não levanta voo. Neste momento ela se dirige mais contundentemente à cisgeneridade – e aí eu me incluo – fazendo-nos encarar (alguns quiçá pela primeira vez) uma realidade sanguinolenta, mas que também se infiltra por subalternizações sutis. O discurso é vigoroso, não há dúvidas, mas se afasta da complexidade poética que estava a ser edificada na primeira parte do espetáculo.

            Ao cabo, a artista diz que precisa sonhar, caso contrário ela não aguentaria. Esta dimensão é fundamental como possibilidade de reimaginar o mundo. Tomemos nota: Leonarda Glück está a comemorar 25 anos de carreira em um dos países que, no mundo, mais assassina transexuais e travestis (isso também é dito no espetáculo). A sua existência já é, em si, um manifesto vivo de insurgência, um rasgo de vida no Brasil-morte.