As duas bombas atômicas brutalmente lançadas pelos Estados Unidos sobre Hiroshima e Nagasaki foram responsáveis pela rendição do Japão, findando a Segunda Guerra Mundial no dia 02 de setembro de 1945. O ataque foi de perto um dos maiores atos de terrorismo de toda a história da humanidade. Tamanha devastação teve consequências para os japoneses até hoje, mas o país se reergueu economicamente, fazendo fortes investimentos em educação e tecnologia.
Setenta e Sete anos depois, o planeta continua ameaçado pelas armas nucleares, mas também, por inúmeras guerras das mais variadas formas em que elas são instauradas no planeta e contra ele mesmo. No Brasil elas existem, a começar com a guerra contra a fome, atualmente agudizada pela crise sanitária da covid-19. Antes fosse somente isso.
Tal cenário que podemos sentir com grande angústia, em território brasileiro tem muitos nomes, um deles ocupa a cadeira presidencial. Qualquer nome de espécies não-humanas convocado a mal dizer aquele que senta no Palácio do Planalto seria uma injúria e um desrespeito aos animais.
Diante do impronunciável, o espetáculo Um jardim para educar as bestas uma criação de Eduardo Okamoto, Isa Kopelman, Marcelo Onofri e Daniele Sampaio parece procurar responder a brutalidade de um governo mortífero com a mesma inteligência com que as rochas respondem à morte.
Um piano, sobre o qual Onofri parece cavalgar como um touro, ágil e forte, e um galho, magro e resistente, com o qual Okamoto parece reger o silêncio. Juntos, eles respondem, com grito e mudez, um incluído no outro. Tal revolta encontra no trabalho inútil da personagem de Seu Inhês em construir um jardim de pedras, a possibilidade de que a beleza eduque a besta. Ainda, há sua esposa Marly, que nas primeiras cenas em que aparece, se manifesta pela presença de um kimono. O casal é uma homenagem a imigração japonesa no Sertão da Paraíba, e, também, personagens inspiradas em A Lenda do Oleiro Saburo e da Senhora Fuyu, um dos capítulos do livro Homens imprudentemente poéticos, de Valter Hugo Mãe.
Para outro autor e poeta, tão caro ao nordeste brasileiro, João Cabral de Melo Neto, a pedra não sabe lecionar. Para aprender da pedra, é preciso frequentá-la, “captar sua voz inenfática, impessoal” (livro A Educação Pela Pedra, 1966). Assim como no conto de Hugo Mãe, o trabalho de Seu Inhês com as pedras parecia uma afronta a natureza selvagem, fazendo do seu jardim, “o avesso do mundo”. Não queria que a pedra ensinasse nada, mas, como ele mesmo nos diz: “no sertão tudo é incerto, menos o que não é”, João Cabral completa “(…)lá não se aprende a pedra: lá a pedra, uma pedra de nascença, entranha a alma.”
O espetáculo, ao mesmo tempo que é uma revolta contra a morte, convoca os espectadores a vivenciarem o luto coletivamente, pois só assim é possível enfrentar as atrocidades do genocídio. Somente a memória compartilhada, e tornada pública, nomeando precisamente seus responsáveis, poderá proporcionar que aqueles que perderam seus familiares para a covid-19, em meio a negligência do governo brasileiro no enfrentamento da pandemia, não percam também a si mesmos num ato de expropriação do direito de continuar vivo, sobre esta terra.
Marcelo Onofri, sentado ao piano, parece lapidar as pedras do terreno sobre o qual Seu Inhês constrói o forte de pedras contra o mal. A música que se ouve é incluída no silencio das pedras. Á medida que o espectador imagina o jardim, o silêncio das pedras é incluído nos sons do piano.
Diante da monstruosidade das guerras que enfrentamos, construir para si um jardim de pedras “(…) nos coloca em contato com as formas do vazio: tudo sempre tão transitório; as formas sempre a nos iludir sobre a sua permanência e, ao mesmo tempo, a nos assegurar a possibilidade de verificação de que tudo muda”, como diz Okamoto em entrevista dada a Luciana Romagnolli no site da MITsp.
A ideia de aproximar o Japão e o sertão vem não apenas entre Valter Hugo Mãe e Kawabata, autor muito admirado por Okamoto e referência para o livro que inspira o espetáculo, mas também por estudos que o ator vem fazendo em butô, dança criada no final dos anos 50 no Japão, tendo como um dos principais fundadores, Tatsumi Hijikata. A manifestação do butô para os seus criadores era uma revolta do corpo em contra-produção ao capitalismo e as barbaridades com que a Guerra marcou os japoneses.
O butô ficou conhecido como a revolta da carne e inspira muitos artistas até hoje. Mas mais do que simples inspiração, o butô faz mais ou menos o mesmo trabalho que a pedra faz no sertão, não leciona nada, de dentro para fora, como diz Cabral de Melo Neto, é uma cartilha muda, apenas para quem soletrá-la.