Palavras e imagens, [“que estranha potência a vossa”] – Crítica do espetáculo O Martelo e a Foice, por Guilherme Diniz

O espetáculo O Martelo e a Foice, encenado pelo francês Julien Gosselin, coloca em cena, quase integralmente, o conto homônimo, escrito pelo renomado autor estadunidense, Don DeLillo. A peça contém, pelo menos, duas grandes discussões interconectadas. Em primeiro lugar, há uma afiada crítica às estruturas sociais moldadas pelo capitalismo, em sua sanha acumuladora, destrutiva e desumanizante. Em segundo lugar vemos no palco um profundo interesse pela linguagem, sobretudo em suas árduas tentativas de construir não apenas sentidos para o mundo, mas de estabelecer relações. Imagens e palavras se atritam nesta montagem que evidencia, ao mesmo tempo, o desespero, a melancolia e o abandono em um mundo dominado pelo capital tecnocrata.

Jerold Bradway é o nome do solitário narrador que, tanto no conto, quanto no palco, observa alucinado e tristemente a sociedade acabadiça em torno dele. O homem está encarcerado, ao lado de tantos outros sujeitos condenados por crimes financeiros, tais como sonegação de impostos, golpes e fraudes de investimento. É a partir da prisão que Jerold pensará em sua frágil existência, não escondendo, amiúde, uma ácida frustração diante da insustentabilidade de sua vida orientada pelo lucro. Pela sua narração conhecemos os demais presidiários. Alienados, desencantados ou compulsivos, aqueles são seres abatidos pelas próprias obsessões.

O ator Joseph Drouet adentra um palco despojado, mas muito denso, como veremos em seguida. Há uma cadeira preta, uma garrafa de água ao seu lado, um pedestal que segura o microfone, alguns bastões de iluminação e uma câmera que, posicionada em frente ao ator, capta o seu rosto. E por fim há uma longa tela horizontal atrás e acima da cabeça de Drouet. Ali a imagem filmada é reproduzida. O despojamento, aparentemente, simples, nos engana, pois entre o corpo físico do ator e sua imagem virtual há encontros e desencontros instáveis. Uma saturada e contínua luz, entre o vermelho e o laranja, colore o palco.  

No texto reflexivo que eu assino, intitulado Plutocracia ou nos escombros do capital – publicado no site da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) – enfatizei a dimensão verbal deste espetáculo, apontando para as variadas inflexões articuladas por Drouet. As suas modulações vocais não concebem apenas um aflito Jerold, mas também todas as outras personagens com as quais ele interage. Distintas entonações e timbres se conjugam em uma atuação que gradualmente vai se tornando mais desesperada, revelando um existencial beco sem saída. Além disso, o ritmo de sua fala se acentua vertiginosamente, produzindo cada vez mais um intenso jato de palavras, um vômito verbal que tenta, a todo custo, elaborar o mundo. Apesar de suas torrenciais e infindáveis palavras, há momentos em que Jerold não deseja (ou não consegue) se comunicar, mas apenas falar. É nesse sentido que a textualidade da cena se aproxima, levemente, de certos recursos dramatúrgicos do absurdo, em que o verbo despejado abundantemente nem sempre estabelece relações, escutas ou comunicações reais. As suas palavras dinâmicas, em andamentos tão distintos, se chocam com o fato de que ele permanece sentado durante quase todo o espetáculo.

Mas há outra dimensão fundamental na estrutura da encenação: a presença da câmera. A imagem filmada nos conduz a um enquadramento bastante escorregadio. No vídeo há apenas um close-up no rosto do ator. Por este ângulo, é possível ver com mais detalhes certos tiques nos olhos, certa crispação na boca e os movimentos repentinos com a cabeça, como se fossem espasmos. Por um lado, isso adensa sutilmente a preocupação da personagem. Mas não nos permite ver no vídeo as regiões mais tensas do seu corpo, como as mãos intensamente irrequietas, ou os pés vacilantes, isto é, elementos fundamentais na expressão daquela figura atormentada. O restante da expressão corporal, excluída pelo quadro fílmico, dá-nos informações e pistas que o seu tsunami verbal nem sempre consegue alcançar. A própria legenda em português puxa o nosso tapete, pois a dramaturgia traduzida é reproduzida na parte inferior da tela, fazendo-nos continuamente olhar para lá se quisermos acompanhar os significados do texto. Esse jogo do olhar é altamente instigante, pois nos convida a construir e a desfazer leituras de modo incessante. Como espectadores, desempenhamos aí um trabalho efetivamente de composição.

Neste momento em que a MITsp e outras atividades artístico-culturais voltam a ser realizadas presencialmente, é curioso pensar como a situação do Jerold filmado se aproxima da maioria de nós quando a pandemia de COVID-19 estava mais forte. Estávamos limitados às telas, um tanto fatiados em quadrados virtuais que davam a ver, majoritariamente, nossas faces. Justamente por isso, alguns dos mais disruptivos espetáculos do teatro virtual ou on-line (ainda vamos tropeçando nas palavras…) foram aqueles que, desnaturalizando o próprio dispositivo (aplicativos e plataformas, câmeras, enquadramentos, etc..), provocavam imagens táteis, texturas e possibilidades (mesmo precárias) de emaranhar tempos e espaços distintos. Em O Martelo e a Foice temos a tela e o corpo físico, ambos munidos de potencialidades e limites em tensa relação. Esta não é evidentemente uma escolha cênica inédita. Mas em termos históricos, no contexto de retomada presencial, ganha novas dimensões. Encontrar-nos ou criar algum vínculo! É este, parece-nos, um dos objetivos centrais de Jerold a fim de escapar (e talvez nos fazer escapar também) da letargia, da indiferença ou da automatização. Basta ver as ocasiões em que ele tenta iniciar ou sustentar diálogos. Quando miramos o homem enquadrado pela câmera, vamos perceber o seu enorme esforço para tentar, desesperadamente, criar algum laço com seus interlocutores reais e/ou imaginários. Durante o confinamento mais duro – Jerold está também confinado, encarcerado – essa tentativa de reconstruir laços e afetos atravessou-nos, de um modo geral. Jerold inicia e termina as suas narrações contemplando o incessante fluxo de veículos, cujos deslocamentos velozes fascinam a personagem que, por sua vez, vê nos modernos automóveis um símbolo do “progresso” humano. A visão o assombra e o encanta, pois ele diz que “queria abrir os olhos para estradas vazias e luz ofuscante, apocalipse, a aproximação estrondosa de algo inimaginável”. Mas ao que tudo indica isso não irá se realizar. O seu desejo pelo “inimaginável” diz muito a este tempo recheado de rápidas imagens que acentuam nossa dificuldade em pensar o impensável e o imprevisto, isto é, tudo aquilo não capturado pela racionalidade capitalista.