SIM, NÓS SOMOS ASSIM


A MITsp chega ao seu sexto ano. Se motivos não faltam para comemorar, rondam-nos também algumas preocupações. Vivemos uma onda reacionária, na qual a arte tem sido frequentemente atacada e demonizada. Seria impossível imaginar, há seis anos, tal retrocesso. Ali, naquela primeira edição, assistimos a dançarinos nus, recobertos por tinta escura, que se movimentavam caoticamente pelo espaço, provocando um contato físico com os espectadores. A obra propunha uma experiência de presença e deslocamento, de proximidade e contaminação, engajando todos os corpos que lá estavam. Vimos ainda, numa alusão ao mítico conflito entre homem e divindade, um grupo de crianças lançando granadas em direção a uma representação do rosto de Cristo, enquanto alguns atores, em outro espetáculo, realizavam um piquenique no Gólgota, como forma de criticar a mercantilização da religião. Sim, por incrível que pareça, isso ocorreu há seis anos, sem nenhuma manifestação pública contrária, nem de repúdio, nem de censura.

Não sabemos o que nos espera nos próximos seis anos. Porém, é necessário que comecemos a enfrentar esses “novos” moralismos, puritanos e regressivos, sob pena de ficarmos reféns de um discurso homogeneizador e de uma prática de patrulhamento. Sabemos, sim, que neste ano a MITsp não retrocedeu em suas inquietações artísticas nem no seu posicionamento crítico, reunindo espetáculos e ações que tratam das sequelas do colonialismo, do sexismo patriarcal, do preconceito de gênero, da negação da história e do corpo liberto. Também nos perguntamos: como representar o absurdo? Ou melhor, como reagir ao absurdo naturalizado? Pois não podemos ser coniventes com a mediocridade e o obscurantismo.

Um teatro com “bons modos” é a antítese do teatro, seja por sua vinculação ao rito originário dionisíaco, seja por seu anseio de trazer à tona aquilo que é recalcado e escondido. O teatro exala, o teatro sua, impregna nossos poros tanto quanto o nosso imaginário. E, por isso mesmo, ameaça fortemente os que têm medo do corpo – do seu próprio e o do outro – e aqueles que querem normatizá-lo e higienizá-lo.

Esse novo-velho moralismo ora se mascara de pretensa defesa de valores, ora reaparece sob a forma de censura. Enquanto censura, sua face mais evidente é aquela da interdição explícita, articulada na calada da noite por governantes e religiosos de plantão. Porém, sua face mais perversa surge depois, no momento seguinte, quando passa gradualmente a ser internalizada até se transformar em autocensura – o que pode acometer tanto artistas quanto instituições culturais.

Por isso, para que não se naturalize, precisamos revelar seus mecanismos e operações. Por exemplo, nomear como pedofilia algo que não é pedofilia só se justifica como um modo de manipular a opinião pública visando a um projeto de desqualificação e desvalorização da atividade artística. A demonização das leis de incentivo e de fomento à produção de arte também faz parte desse mesmo propósito. Já sabemos a quem isso serve; portanto, é hora de estacarmos essas estratégias de difamação.

Porém, à revelia dos que querem alvejá-la covardemente, a arte tem mostrado uma força inequívoca de gerar incômodos e de provocar curtos-circuitos. Ao contrário do que gostariam os puritanos, a dança e o teatro continuam a nos desregrar e a dar vazão às nossas pulsões. Sim, as artes da cena são inadequadas, barulhentas e espaçosas, não combinam com salões de chá nem com bailes de debutantes. Sim, são mal-educadas e, quando educam, o fazem por meio de des-aprendizagens. Não, nós não sentimos muito. Na verdade, nós sentimos demais, sempre, com toda a força dos nossos pulmões e nossas gargantas.

Lutamos muito para chegarmos até aqui. Não podemos permitir que esses novos censores – encarnados não mais por burocratas de algum regime ditatorial, mas pelo vizinho ao lado ou por um primo distante – transformem tudo em tabu. Sim, de repente tudo se tornou tabu. E ainda que as intenções, às vezes, possam ser boas, as consequências são, via de regra, autoritárias. Interditam o próprio corpo em sua potência de vida. Constrangem sua liberdade de existir e de se manifestar. Criminalizam o seu prazer. Como nos lembra Maria Galindo, “não há liberdade política se não houver liberdade sexual”.

Portanto, deixemos os corpos dos artistas livres para que também os nossos corpos possam assumir as formas e os gêneros que quiserem. Descolonizemos nossos corpos e nossos pensamentos. Canibalizemos os novos missionários que querem catequizar o nosso desejo. Não permitamos que nomeiem o livre uso do corpo como depravação ou patologia. Não aceitemos que uma suposta agressão à infância seja usada como argumento de vilanização do artista, nem que a infância seja entendida como uma redoma de vidro impenetrável e asséptica, colocada fora da vida. Não, não deixemos os artistas serem caluniados. Não deixemos que pré-julgamentos e sentenças anteriores ao contato direto com a obra substituam o exercício de fruição e de escuta da mesma. Não deixemos que um meme, muitas vezes falso, substitua a experiência in loco, do aqui e agora do teatro.

A 6ª MITsp busca hoje, mais do que nunca, defender os artistas da cena, seu voo arriscado, seu despudor, sua coragem em explorar territórios desconhecidos. Defendemos a liberdade de expressão. Não aquela sem limites, que ignora as necessidades de reparação racial, de gênero ou de orientação sexual. Mas também não aceitamos a transformação do medo de si em paradigma moral para os outros. Celebremos o corpo, o risco, a dúvida, o gozo. Riamos do absurdo de nossos tempos, confrontemo-nos com nossos hábitos patriarcais, iluminemos as feridas do passado colonial nas cicatrizes mal curadas do presente, problematizemos nossas certezas de gênero. Mas, acima de tudo, não recuemos.

Sim, nós somos assim.

Sim, nós estamos aqui.

Juntem-se a nós!

 

Antonio Araujo
Idealizador e diretor artístico da MITsp