Entrevista com Milo Rau – Artista em Foco MITsp
O primeiro ponto do NTGent Manifesto, lançado por você em maio de 2018, diz que o teatro não é mais sobre mostrar o mundo e sim sobre mudá-lo. E que o objetivo não é descrever o real, mas tornar a representação em si real. De que modo essas duas premissas são trabalhadas nos espetáculos que você trará ao Brasil na MITsp?
Eu trabalho com uma dialética entre o ativismo e a substância mais trágica do mundo. A Repetição. História(s) do Teatro (I) e Compaixão. A História da Metralhadora, por exemplo, pertencem ao lado mais trágico do meu teatro. Mas algumas de suas características podem levar a mudanças. Uma redefinição do olhar da plateia sobre a homossexualidade e o direito do outro, por exemplo, seria possível a partir de A Repetição. Fora isso, a agressividade das personagens da peça — jovens de Liège, cidade belga, assassinos de um homossexual — pode ser vista como uma consequência da desindustrialização, da violência causada pelo neoliberalismo na Europa Ocidental. Mas não está em cena uma efetiva mudança das questões abordadas, o que de fato acontece nas peças que realizei na General Assembly — The Congo Tribunal, The Moscow Trials e The Zurich Trials. Nessas, recriamos instituições ou até mesmo inventamos organizações que não existiam. Já Cinco Peças Fáceis descreve o mundo, mais do que tenta transformá-lo.
Gosto sempre de citar o filósofo italiano Antonio Gramsci, que afirma que existe o pessimismo da razão e o otimismo da vontade. A Repetição e Cinco Peças Fáceis não são espetáculos otimistas, são bastante sombrios, até mesmo um pouco deprimentes. Mas apresentam um certo otimismo melancólico no quinto ato, no seu desfecho. É importante dizer que minhas peças, mesmo as mais sombrias, têm uma característica pela qual tenho muito apreço: a solidariedade dos atores com o público. Por exemplo, crianças interpretando o sombrio caso Dutroux. Para a minha geração, uma história extremamente grave. Para elas, algo superado. A maneira como elas interpretam esse caso, como se fosse uma fábula, é muito interessante. E é esse aspecto que gera um certo otimismo. O que também acontece em A Repetição. História(s) do Teatro (I), quando presenciamos pessoas sem camisa no palco, interpretando uma tragédia. É como se fosse uma vingança da arte contra a vida. Mas não configura de fato um ativismo, como o que se faz presente em The Congo Tribunal, por exemplo.
Outro ponto do manifesto propõe a participação de pelo menos dois atores não profissionais em cena. Quais questões eles trazem para o chamado “realismo global” que você tem buscado construir?
Sim, essa é uma das regras. Mas acredito ser necessário observar as regras como um todo. É difícil pinçar apenas uma delas, como a primeira, que é sobre a transformação da realidade. Ambas são importantes para o “realismo global”, assim como as diferentes línguas importam. Para mim, é também relevante que o teatro não seja realizado apenas por profissionais, por especialistas. Eu sou um diretor, por que só poderia dirigir peças previamente escritas ou interpretadas por profissionais, que, assim que aprendem as falas, apresentam-se num palco? Realmente me interessa entrelaçar essas funções. Por isso, peço aos atores para contarem sobre suas vidas ou escreverem as próprias falas. Os atores se tornam dramaturgos. Meu desejo de reunir profissionais com pessoas de um contexto diverso ao do teatro se origina também nesse ponto. Por exemplo, em Hate Radio, peça sobre o genocídio em Ruanda, trabalhar com ruandeses era de uma importância extrema. Eles conheciam o assunto e, de certa forma, tornavam-se moderadores, enquanto eu tentava dar forma a uma experiência que não era a minha. De alguma maneira, preciso deles. O fato de não serem profissionais não é o que importa, inclusive porque o que geralmente acontece – ocorreu após minha peça mais recente, Lam Gods, ou com A Repetição, e mesmo com as crianças que atuam em Cinco Peças Fáceis –, é que eles estreiam nas minhas peças e logo participam de outros espetáculos, filmes ou passam a fazer parte do Ghent Ensemble.
Você já disse em uma entrevista que “realismo”, para você, significa “criar uma situação incontrolável”. Por que o risco real te parece tão potente em termos artísticos, políticos, morais e existenciais?
Dentre os formatos artísticos, o teatro, especialmente, não se resume a um produto, já que abrange um ininterrupto processo de produção cênica, do qual nunca se sabe qual será o desfecho. Por exemplo, a peça que ensaio neste exato momento [janeiro de 2019], intitulada Orestes in Mosul, trata-se de uma coprodução com Mossul, a cidade iraquiana. Não sabemos como será o resultado. E o mesmo ocorreu com A Repetição, nós fomos até a cidade de Liège para iniciar o processo de seleção de elenco, e a peça aborda o processo como um todo. Fazer teatro é abrir um processo, iniciar uma discussão, criar uma espécie de novo coletivo, de nova solidariedade. E qual será o resultado? Não sei. Por isso, na maioria das vezes, não enceno clássicos. Para tentar escrever [as peças] no momento exato da criação. Portanto, o risco está no processo como um todo. Não se trata de ser perigoso. Eu não consigo ver nenhum sentido em simplesmente colocar pessoas em risco. É arriscado no sentido de que vivenciamos um processo que nunca saberemos se dará certo. O teatro, assim como a arte em geral, é uma espécie de desafio. Impossível saber se seremos bem-sucedidos. Para dar outro exemplo, quando montamos Hate Radio, a peça sobre o genocídio em Ruanda, antes de iniciar a turnê européia nos apresentamos na cidade africana; queríamos ter certeza de que havíamos conseguido realizar a peça, de que tivemos êxito em alcançar uma espécie de dureza presente na população de Ruanda. Nós estávamos muito nervosos, especialmente, é claro, os atores ruandeses. Eles não haviam retornado à cidade desde o genocídio e estavam muito apreensivos se seriam compreendidos. E foi necessário [para o processo] que eles vivenciassem essa situação. Fora isso, só fico motivado a trabalhar quando não tenho ideia do que irá acontecer no próximo ensaio. Diversas vezes, fiz a besteira de criar versões para as minhas peças. Sempre foi um erro. As reedições foram extremamente tediosas. Não é o jeito que gosto de trabalhar. Gosto simplesmente de improvisar, do início ao fim.
Há em alguns de seus trabalhos a criação de situações em que problemas sociais de outros países possam ser elaborados criticamente, por exemplo, o genocídio em Ruanda. Enquanto homem branco, europeu, nascido em um continente que foi responsável pela colonização de outros, quais reflexões críticas lhe parecem importantes para não repetir o gesto colonizador no teatro? E como isso pode ser visto em estratégias dramatúrgicas em suas peças?
Trata-se de uma questão de impossível superação. O único caminho seria não montar peças sobre outros países, sobretudo para quem, como eu, nasceu em um continente “colonizador”. Eu acho que o problema é que o homem branco, especialmente o europeu, está, de qualquer forma, presente na África. Por isso, uma presença solidária, um intercâmbio, um contra-ataque, uma resposta à participação do continente europeu na economia, configuram um rumo possível. Eu decidi, ou talvez não tenha sido uma decisão, seguir esse caminho, porque vivemos em um único mundo. Infelizmente, as alterações climáticas não cessam com as fronteiras, que, por sua vez, não paralisam a economia. Não há uma arte realista global, embora haja uma economia global. Eu aposto em uma abordagem global das questões universais, a partir da busca por uma metodologia com um enfoque horizontal. Talvez as críticas sejam dirigidas às abordagens verticais. Mas não tenho todas as respostas. Eu estabeleço práticas [para alcançar a abordagem horizontal] e as questiono a cada projeto. A peça Compaixão. A História da Metralhadora, por exemplo, aborda o genocídio em Ruanda e a Guerra Civil no Congo. Mas apresenta também uma vigorosa crítica à “indústria assistencialista ocidental” e à “miserabilidade na arte”, uma consequência do processo de globalização. Portanto, de certa forma, faço uma autocrítica sobre o meu gesto de falar a respeito da Rússia, de Ruanda e do Congo, e não apenas sobre Liège, Suíça e Alemanha.
Em entrevista recente, você afirma que há duas vias possíveis para o teatro contemporâneo, a tragédia e o ativismo. Como o ativismo se dá na prática de seu trabalho, dentro e fora da cena? Que aspectos do trágico identifica em suas peças que estão na MITsp 2019 e que estratégias utiliza para materializar a tragicidade no diálogo com dispositivos da cena documental?
Há sempre um equilíbrio entre esses dois caminhos. O início da nossa conversa abordou a estética e a arte descritiva. Eu acredito na arte realista. E a realidade é um processo trágico. Mas há outra faceta da minha obra, que tem uma abordagem mais ativista. Por exemplo, apresentei Compaixão. A História da Metralhadora e Hate Radio, enquanto encenava The Congo Tribunal, para a qual criamos uma inexistente e simbólica organização sindical econômica global, visando a compreender e, quem sabe, a transformar a situação do Congo. De fato, para que eu não me torne um cínico, buscamos um equilíbrio entre os projetos realistas/documentais e os utópicos/ativistas. Quanto mais envelheço, mais compreendo o quanto o otimismo e o pessimismo, a tragédia e o ativismo, estão vinculados. Sem a substância trágica do mundo, o ativismo torna-se apenas uma ingenuidade. Por outro lado, só o trágico, sem um traço de utopia, faria de mim, e de todos nós, cínicos. De fato, há uma dialética. Um precisa do outro.
Em Cinco Peças Fáceis, quais cuidados você tomou na seleção e preparação de atores crianças no sentido de criar um ambiente seguro para elas, considerando tanto questões como a impossibilidade de a criança dar consentimento em razão de sua imaturidade, mas também a importância de participarem das discussões sobre questões que lhes dizem respeito, para o próprio amadurecimento delas? E, especificamente, como foi a negociação e a preparação da cena com a Rachel, que representa uma das vítimas?
Nós trabalhamos muito tempo em Cinco Peças Fáceis. Ao longo de um ano, ensaiamos e, desde então — a peça completou três anos —, seguimos com as apresentações em diversos lugares do mundo. Para as crianças, a experiência pode ser comparada a uma escola de teatro. Na equipe, há dois preparadores, dois psicólogos. Portanto, antes e depois dos ensaios, sempre conversávamos muito. É muito importante, quando você trabalha com crianças, ou com adolescentes, que fique claro para elas que o comportamento fora de cena difere daquele estabelecido para o palco, onde elas se tornam artistas, devem ter profissionalismo, concentração e foco para executar as falas e as ações com significado cênico. Já fora do palco, são apenas crianças. Foi nessa questão que trabalhamos durante muito tempo. Eu fiquei bastante impressionado, até um pouco chocado — porque sou um tanto mais velho do que essa geração —, com a abrangência do conhecimento dessas crianças.
Nos primeiros ensaios, perguntei o que elas sabiam sobre o Caso Dutroux. Elas sabiam de tudo, até que vítimas de estupro precisam fazer um teste de DNA. Quando eu tinha a idade delas, meu entendimento era muito mais restrito. Mas é claro que se trata, sobretudo, de um conhecimento teórico. Para elas, Dutroux é uma fantasia. Elas interpretam monstros, mas a maneira como atuam as blinda de ficarem traumatizadas. Eu acredito que o grande obstáculo, para elas, parte da pressão social de estar em cena, participando de uma turnê. Elas inspiram cuidados não apenas ao longo dos ensaios, por conta do tema e do argumento da peça, mas também pela maneira como interagem com o grupo. Eu preciso dizer, e aprendi tudo isso com os psicólogos que nos acompanham, que as crianças têm sempre infinitas possibilidades de refletir sobre tudo. Por outro lado, adoraria ter tido, quando criança, a oportunidade que elas têm de viajar pelo mundo, de conhecer o teatro e de visitar diversos países. Elas estão muito mais fortes do que quando as conheci, eram criancinhas e tornaram-se jovens atores. É impressionante como o teatro tem o poder de ajudar no processo de amadurecimento.
Sobre a Rachel, é claro que conversamos com ela e seus pais diversas vezes. Na realidade, escalar uma criança é elencar a família dela. E fico muito feliz que a maioria dos pais [dos atores da peça] tenha uma relação de amizade comigo. Ao longo de todos esses anos, trabalhamos juntos. Eles aprenderam todo o texto da peça, especialmente os pais da Rachel. A mãe dela é pediatra e o pai é luthier. Eles são muito artísticos. Na minha opinião, sabem cuidar muito bem da filha, distinguem o que é bom ou não para ela. Daqui a alguns anos, a Rachel estará mais velha e talvez tenhamos que mudar a concepção da cena. Nós conversamos a cada nova apresentação. Sempre me impressiona a quantidade de violência e de pornografia presentes na nossa mídia e, ao mesmo tempo, o choque causado por essa cena tão delicada com crianças. Houve uma escandalização desse espetáculo, repetidas vezes, e muita estupidez foi escrita. Mas todos que de fato assistiram à peça concordam que [a cena com Rachel] não passa de um singelo e poético momento.
Nas três peças, você utiliza a duplicação da imagem dos atores e atrizes em vídeo. O que esse dispositivo faz, como ele opera na relação com o espectador?
Eu utilizo a câmera de diferentes formas, de acordo com a necessidade de cada peça. Em Cinco Peças Fáceis, as imagens dos atores adultos são projetadas e as crianças no palco interpretam as mesmas cenas, simultaneamente — como se fosse uma espécie de reencenação, ou reflexo. A câmera também serve para me aproximar dos rostos dos atores, gerando close-ups, possibilitando uma melhor visualização das emoções nas faces dos atores, o que cria uma relação muito íntima com o público. Às vezes, a câmera realiza apenas a duplicação de uma cena real, o que causa um distanciamento. Por exemplo, em Compaixão. A História da Metralhadora, há um momento em que a atriz “sai” da projeção de sua própria imagem e o vídeo segue. O público então entende que a cena durante todo o tempo era “falsa”. Esse recurso gera um questionamento sobre o limite entre a atuação e a realidade. Outras vezes, apenas faço um registro, como nos filmes que realizei para o cinema, que, muitas vezes, partiram da filmagem de uma peça. E há também as performances, gravadas porque eram apresentações únicas. Nesse caso, é um arquivo.
Tendo em vista que as peças abordam traumas individuais e coletivos, que concernem à dor do outro e eventualmente ao lugar de fala do outro, quais foram os dilemas éticos mais significativos nos processos de criação desses espetáculos? E que consequências esses dilemas trouxeram para a cena?
A Repetição aborda o assassinato de Ihsane Jarfi, ocorrido há seis anos, e Cinco Peças Fáceis, o Caso Dutroux, que aconteceu há 20 anos. Ambos são traumas coletivos na Bélgica. Algumas das vítimas, os criminosos, e seus parentes estão vivos. Por isso, antes de iniciarmos o processo, por uma questão ética, entramos em contato com todos os envolvidos e os convidamos para participar dos ensaios. Algumas vezes — o que ocorreu com o pai, o ex-namorado e um dos assassinos de Jarfi, por exemplo —, trabalhamos em uma colaboração muito estreita. Se não me engano, o pai e o ex-namorado até cogitaram estar em cena. A relação é muito próxima. Além disso, temos a necessidade de nos apresentarmos onde os casos ocorreram. Por exemplo, a estréia de A Repetição foi em Liège, local do assassinato de Jarfi. Nós realmente tentamos estar o mais próximos possível deles, também por uma questão estética, por ser necessário para a criação da peça. Porém, ao fim do processo, abordamos os casos de uma forma universal, embora sempre seja imprescindível um certo artifício, porque, na minha opinião, é impossível realizar um teatro documental. O teatro opera, inevitavelmente, uma total transformação no caso em questão. Portanto, cada acontecimento se transforma em uma história relacionada a todos nós, a partir de uma perspectiva mais universal. Os envolvidos nos crimes precisam ter essa consciência. Por isso, nós conversarmos com eles não só para apreender o que aconteceu, como também para que haja a compreensão de que uma peça de teatro não é uma reportagem.
Em seus trabalhos há uma abordagem explosiva da “questão do mal”, relacionada ao conceito de banalidade do mal de Hannah Arendt, e às vítimas da espoliação colonial, do racismo, das guerras e dos desastres econômicos e climáticos decorrentes do neoliberalismo financeiro. Como as peças apresentadas na MITsp dialogam com essas questões?
O teatro, da maneira como o concebemos, é um espaço simbólico que possibilita certa forma de solidariedade. Por exemplo, eu classifico The Congo Tribunal como instituição simbólica. No Congo, não há uma organização sindical que se ocupe de crimes econômicos. Portanto, criamos uma. E lá nos apresentamos junto a advogados de sindicatos internacionais. Assim, nós concebemos o único espaço onde a justiça pôde ser feita. Eu acredito que o teatro pode contribuir, de forma simbólica, ao estabelecer uma espécie de revanche. É um espaço utópico para a ação, onde um crime pode transcender, alcançar a todos, em algum outro lugar, onde há justiça, imputação e etc. Sinceramente, não estou sendo nada irônico ou cínico. Eu realmente acredito que a arte tem a força necessária para conseguir reunir pessoas em torno de uma realização, de uma mudança na percepção da realidade, ou até de uma efetiva mudança na estrutura, ou na situação política. Uma das consequências do The Congo Tribunal foi a demissão de ministros… A arte é capaz de transformar gestos simbólicos em justiça concreta.