Entrevista com Marta Soares – Artista em Foco MITsp
Por Julia Guimarães, Luciana Romagnolli e Ivana Menna Barreto
Você já afirmou em entrevistas que sua dança responde ao trauma de uma infância em uma cidade interiorana e patriarcal, durante a ditadura militar: “Acredito ser esse um dos motivos pelo qual venho criando danças sobre a impossibilidade de dançar”, disse. De que maneira seu contexto de vida atual interfere nesse passado e também afeta seu modo de dançar?
Eu cresci em Piedade, uma cidade do interior de São Paulo. Tive uma educação não rígida, mas com ausência de diálogo, de questionamentos e principalmente sem acesso a sentimentos no âmbito familiar, escolar e social. O que a meu ver reflete o regime político daquele momento, a ditadura. Me lembro do momento em que senti pela primeira vez o peso do meu corpo em um piso de dança, quando já jovem, em São Paulo, e me dei conta de que talvez, nesse lugar, eu poderia entrar em contato com meus sentimentos. Foi esse um dos motivos pelo qual prossegui na dança. Quando comecei a criar, as questões biográficas foram emergindo e influenciam ainda hoje, consciente ou inconscientemente, minhas escolhas temáticas. Portanto, o processo de criação funciona no presente como uma via para trabalhar traumas passados e ressignificá-los.
Como no corpo se relacionam, na sua concepção de dança, o conceito de “informe” (essa dissolução de limites entre artes, gêneros e entre o corpo e o entorno), a impossibilidade de dançar e as restrições impostas ao corpo (como a banheira de O Banho e a areia de Vestígios)?
O conceito “informe” está presente no meu trabalho através de operações que transgridem a lógica formal – esta depende da distinção de oposições categóricas como dentro/fora, figura/fundo, homem/mulher, vivo/morto. Segundo a crítica de arte Rosalind Krauss, “É a transgressão dessas distinções, a imaginação perigosa dos seus colapsos, que produz o informe”.
O solo Les Poupées, inspirado nas fotografias de bonecas de Hans Bellmer, explora o “informe” pelo movimento, através da dissolução da distinção entre os estados animado e inanimado. O espetáculo tem como modelo um manequim, pois este transmite um profundo sentimento de morte e a condição dos mortos. Nele, a exploração do “informe” também ocorre no figurino, que anula partes do corpo, borra a diferenciação entre os gêneros masculino/feminino, e limita seus movimentos, possibilitando a geração de novas imagens e significados à obra.
A instalação coreográfica O Banho, cujo ponto de partida é a Casa de Dona Yayá, um hospital psiquiátrico privado, também explora a indistinção entre os estados animado e inanimado. Em uma banheira, microcosmo da casa da Dona Yayá, o corpo da performer, em um limiar entre ativo e passivo, move e deixa-se mover pela água, tendo como referência as fotografias das histéricas realizadas no hospital Salpêtrière, em Paris, durante os experimentos médicos dirigidos por Jean-Martin Charcot.
Já as imagens em vídeo projetadas em O Banho, realizadas na casa da Dona Yayá, a maioria delas a partir dos reflexos do solarium de vidro, exploram o “informe” através do mimetismo, ou seja, da dissolução da distinção entre figura e fundo. Trata-se de uma alusão ao fenômeno de despersonalização por assimilação do espaço que ocorre em crises esquizofrênicas, doença com a qual Dona Yayá foi diagnosticada.
A instalação coreográfica Vestígios, cuja referência são os sambaquis, cemitérios indígenas pré-históricos encontrados no litoral do Brasil, explora tanto a dissolução da diferença entre vivo/morto, via imobilidade, quanto o mimetismo, através da relação de indistinção entre o corpo da performer e o meio no qual está. O corpo se encontra deitado sobre uma plataforma forrada por pedras, recorte de um samabaqui, totalmente coberto por areia, imóvel, e ao ser lentamente descoberto pelo vento gerado por um ventilador, vai se revelando através de uma série de devires: osso, concha, planta, ancestral, mulher, sambaqui, paisagem etc.
Uma das questões mais evidentes em Vestígios é a ação do tempo. Este e O Banho são trabalhos criados em 2010 e 2004, respectivamente. Como o tempo agiu sobre eles? Que sentidos surgem ao revisitá-los?
Sinto que a ação do tempo sobre Vestígios e O Banho ocorreu principalmente no meu corpo, que os performa. Ou seja, através das forças dos acontecimentos que incidiram sobre ele e o transformaram. A perda dos meus pais foi o acontecimento mais significativo pelo qual fui afetada neste período, e me levou ao aprofundamento da minha compreensão sobre a morte. Consequentemente, sobre uma das principais questões abordada nessas obras, que é: como dançar o ponto de suspensão do o corpo que se encontra entre vida e morte? Outro exemplo é o que ocorre na instalação coreográfica O Banho: meu corpo, desde a estreia, em 2004, há 15 anos, obviamente envelheceu. Enquanto nas projeções de vídeo que compõem a instalação ele permanece jovem – as imagens foram captadas em 2002. Por esse motivo, quando revisito a obra, sinto necessidade de ressignificar a relação entre o corpo que performa em tempo real e o corpo virtual das projeções em vídeo. Novas camadas de sentidos temporais vão sendo adicionadas ao corpo.
Sua formação e sua trajetória passam por diálogos com Rudolf Laban e Kazuo Ohno, Christine Greiner e Suely Rolnik, o fotógrafo alemão Hans Bellmer e o cientista Jean-Martin Charcot, que influenciou Freud. De que maneira essa tradição e a visão psicanalítica ou surrealista do inconsciente compõem seu pensamento sobre dança?
As experiências que tive estudando dança improvisacional com Maria Duscheness (introdutora do método Laban no Brasil) e Kazuo Ohno (um dos criadores do butô), ambos influenciados pela dança expressionista alemã, como também estudando teatro performático com Lee Nagrin(membro do grupo The House, dirigido por Meredith Monk), entre outros, abriram caminhos para eu compreender e investigar, em meus processos de criação, o movimento via imagens. As imagens levam a sensações e estados sem que seja preciso premeditar o movimento. Kazuo Ohno, depois de discorrer sobre algum tema em suas aulas, dizia: “Agora dancem, não pensem”. Esses estudos também abriram caminhos para que eu compreendesse e explorasse maneiras de criar com base em material biográfico, ou seja, a partir de questões relacionadas à ancestralidade, a cicatrizes internas, a memórias e traumas (individuais e coletivos) que carregamos em nossos corpos. Portanto, a questão psicanalítica e surrealista do inconsciente está presente no meu pensamento de dança por meio, principalmente, da utilização de procedimentos investigativos que possibilitam o emergir do “acaso”.
Tanto O Banho quanto Vestígios partem de um método de criação semelhante, que consiste em realizar extensas pesquisas de campo sobre o objeto investigado. Como esse tipo de experiência reverbera nas obras, seja do ponto de vista artístico e/ou conceitual?
As pesquisas de campo que realizei na criação de Vestígios e O Banho são tão parte da obra quanto a performance final. Já que, durante as imersões na casa da Dona Yayá, que duraram seis meses, e nos sambaquis, que ocorreram em cinco etapas (entre 2007 e 2010), a fronteira entre arte e vida foi definitivamente borrada. Meu corpo foi profundamente impregnado por esses espaços, e a memória celular deles passou a constituir meu corpo, reverberando durante as performances. Foi também durante essas imersões que captei as imagens em vídeo e os sons incidentais que integram as obras e pude visualizar seus recortes espaciais. Portanto, para mim, não há separação entre pesquisa de campo e obra. Pois tudo está interligado em um único corpo, o da performer.
Que tipo de relação você busca instaurar junto ao público ao propor o confinamento e a (semi)imobilidade como modos de ser do seu corpo nos dois espetáculos? E qual o papel, nesse diálogo com o espectador, das imagens projetadas em cena?
O confinamento do corpo em O Banho ocorreu como consequência das imersões que realizei na casa da Dona Yayá. Quando estava filmando a passagem do tempo, por meio do meu corpo imóvel na banheira com água, me dei conta de que a performance poderia ocorrer nela. Que a banheira seria um recorte da casa e a sintetizaria como um todo. E que as imagens em vídeo corresponderiam à memória e ao inconsciente do corpo na banheira. O corpo, em Vestígios, fica posicionado em cima de uma plataforma de pedra e coberto por areia; essa ideia de confinamento também foi pensada em consequência das imersões que realizei nos sambaquis, durante as quais me dei conta de que o recorte de um sepultamento estaria relacionado, segundo a arqueologia, à camada individual contida nos sambaquis, como também simbolizaria todos os milhões de sepultamentos existentes neles. Me dei conta também de que as imagens em vídeo dos sambaquis inteiros na paisagem, captadas em time lapse, estariam relacionadas, segundo a arqueologia, às camadas simbólica e sagrada dos sambaquis. A relação que o confinamento e a (semi)imobilidade como modo de ser do corpo busca instaurar junto ao público nessas obras é ritualística. No caso de Vestígios, um ritual de exumação de um sepultamento pré-histórico, e no caso de O Banho, um ritual de limpeza e cura em homenagem à resistência da Dona Yayá e das mulheres que viveram ou vivem situações semelhantes à dela.
Seu trabalho evoca muitas vezes, e sobretudo em Vestígios, o desaparecimento do corpo, que se deixa confundir com a paisagem. Essa operação é curiosa num mundo que estimula a visibilidade constante. Você considera essa atitude uma forma de recusa? Gostaria de falar sobre isso? Por outro lado, identifica nesse processo uma espécie de camuflagem, em diálogo com os trabalhos de artistas como Ana Mendieta e Francesca Woodman, que expõem seus corpos impregnados pela textura do espaço?
Sim, eu diria que essa atitude do corpo que se deixa confundir com a paisagem em Vestígios é uma forma de recusa à visibilidade. Para o sociólogo Roger Caillois, o mimetismo, ou seja, a dissolução da diferenciação entre figura e fundo, em algumas espécies animais, seria uma operação de queda do ego, durante a qual o espaço invadiria seu corpo. Segundo ele, essa seria uma operação equivalente ao que ocorre em surtos esquizofrênicos, nos quais a pessoa se torna despossuída e o espaço a devora. No caso de Vestígios, eu não existo como sujeito. Sou um corpo sepultado, em um ritual de exumação, atravessado por devires. Identifico um diálogo entre Vestígios e os trabalhos de artistas incríveis como Ana Mendieta e Francesca Woodman a partir da operação mimética, ou seja, dos seus corpos como casos de despersonalização por assimilação do espaço.
Há em seu trabalho um desejo de paragem, de ausência de movimento, de silêncio e, no entanto, o corpo está sempre em movimento sutil, trabalhando, mesmo quando há uma aparente imobilidade. Ressalta a importância de uma consciência da respiração, e de uma precisão, tanto em Vestígios quanto em O Banho. Qual a importância da preparação corporal em seus trabalhos (há uma preparação distinta para cada um?); e, por extensão, da sua formação nos estudos do corpo, nos seus processos artísticos?
A preparação corporal possui uma grande importância nos meus trabalhos, sim. Em especial a técnica hatha yoga, que estudo e pratico há cerca de vinte anos. Não houve preparação distinta para O Banho e Vestígios. Nos períodos em que criei os dois trabalhos, pratiquei yoga e balé com influência somática. Minha formação variada em estudos do corpo também teve uma grande influência na criação desses trabalhos. Em especial os estudos que realizei de improvisação composicional com a americana Lisa Nelson, que tem como foco a desierarquização dos sentidos e o desenvolvimento de uma escuta sensível do corpo em relação ao outro e ao ambiente. E, também, os estudos de teatro performático que realizei com a performer e diretora americana Lee Nagrin e com o dançarino japonês Kazuo Ohno.