Texto escrito a partir do espetáculo Campo Minado, por Julia Guimarães (MG).

À primeira vista, seria possível considerar o espetáculo Campo Minado, da diretora argentina Lola Arias, como um trabalho de teatro documentário centrado no episódio histórico da Guerra das Malvinas. No entanto, há indícios ali que parecem levar a temática inicial a um contexto mais amplo, vinculado tanto ao que antecede e sucede as guerras, como também a uma aproximação com seu cotidiano menor, menos visível. Ou, ainda, ao processo em si de criação da obra, que se propõe a promover um inusitado encontro entre antigos oponentes.

Em cena, seis veteranos do conflito travado em 1982 entre o Reino Unido e a Argentina, três de cada lado, performam uma rememoração coletiva de suas vivências acerca do ocorrido. A opção por fazer do palco uma espécie de set de filmagem, com projeções ao vivo de documentos, reenactments das memórias da guerra, assim como demonstrações dos treinamentos a que se submeteram no processo de “converter-se em soldados” parece materializar um eixo conceitual da obra: a ênfase na dimensão teatral/ficcional que atravessa tanto o ambiente da guerra e da disputa por poder, como também a relação entre memória e narrativa.

Cada uma das etapas vinculadas a essa rememoração – como o processo de alistamento militar, o deslocamento até as ilhas Malvinas, a espera do inimigo, os capítulos mais trágicos da batalha, ou o retorno ao local do confronto anos depois – são simultaneamente narrados e ilustrados pelos participantes, a partir de um jogo lúdico entre relato e ação. Como se aqueles ex-combatentes de meia idade, passados 35 anos do ocorrido, já conseguissem elaborar certo distanciamento sobre suas próprias vivências.

Por um lado, a brincadeira de reencenar coletivamente aspectos da guerra colabora não apenas para elaborar um tratamento cênico a essas memórias, mas também para viabilizar, de algum modo, a própria complexidade de um projeto como Campo Minado, seja ao favorecer uma aproximação entre antigos oponentes em chave menos antagônica ou por tangenciar a dimensão traumática da experiência sem precisar reativá-la a cada apresentação. Por outro lado, a escolha por apostar nesse tratamento mais lúdico da linguagem também traz suas consequências. E uma delas é a de apaziguar os dissensos inerentes à situação proposta em cena, o que às vezes parece recalcar as nuances mais profundas daquela experiência.

Não por acaso, um dos momentos mais densos do espetáculo, talvez porque metamorfoseia a teatralidade da guerra pelo jogo confessional de um consultório, é a cena do diálogo travado entre um ex-soldado e psicólogo inglês, atualmente dedicado a tratar dos traumas de veteranos de guerra, e um esportista argentino, que se viciou em cocaína e álcool em decorrência da batalha e chegou a tentar suicídio. Ali, o ex-combatente explica como o sentimento de ódio que nutriu pelos britânicos durante anos estava conectado ao próprio processo de subjetivação vivenciado por um soldado em guerra: “tinha que odiar para poder disparar”, analisa.

É também o recurso da teatralidade que projeta em cena os protagonistas macropolíticos da Guerra das Malvinas, como a primeira ministra britânica Margaret Thatcher e o ditador militar e ex-presidente da Argentina Leopoldo Galtieri. Embora se trate de um recurso já bastante explorado no teatro latino-americano, o uso de máscaras de borracha para construir uma representação caricatural de líderes políticos estabelece em cena um contraponto com a presença dos veteranos. Nas entrelinhas desse contraste, estaria o hiato entre os discursos oficiais em torno de uma guerra – cujos reais interesses políticos são camuflados por ficções nacionalistas – e a experiência de quem vivencia no próprio corpo as consequências de tais decisões governamentais, quase sempre alheias aos interesses da população.

Já em outros momentos, é a dimensão metateatral de Campo Minado que colabora para dar a ver enquadramentos que extrapolam a própria cena. A partir de relatos sobre a experiência de convívio desses soldados no decorrer das temporadas que o espetáculo já realizou – por exemplo, quando os argentinos contam sobre a experiência de apresentar a obra na Inglaterra – é possível antever os significados do projeto para além do palco, em seus bastidores. É também a partir de uma reflexão semelhante que os participantes revelam certas decisões de ocultar passagens mais delicadas ou íntimas daquela vivência, como o trecho de um diário escrito durante a guerra ou a escolha por suprimir uma cena de tortura do espetáculo. Esses momentos são interessantes como uma quebra sobre os efeitos de autenticidade e transparência irrestritos que aquelas figuras “reais” podem potencialmente transmitir. Fica claro na obra que os relatos proferidos em cena dizem respeito, sobretudo, aos lugares que os veteranos conscientemente quiseram expor e dividir com o espectador.

O viés político do projeto de Lola Arias se relaciona tanto com a valorização de aspectos cotidianos daquela experiência, capazes de revelar contradições emblemáticas acerca do próprio dispositivo-guerra, como também – e sobretudo – pela ponte entre passado e presente que aqueles corpos e subjetividades apresentam ao espectador. É a partir dessa interação que o espetáculo colabora para dilatar a percepção do público acerca daqueles acontecimentos e, com isso, suscita releituras sobre a própria noção de história, pensada aqui em sua dimensão performativa.

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