Crítica panorâmica a partir da programação da MITsp, por Clóvis Domingos (Horizonte da Cena/MG)

No material gráfico e visual da MITsp, encontra-se uma imagem emblemática: uma cadeira vazia disposta sobre as águas, que tem como horizonte o infinito. Tal imagem retorna agora à minha memória quando percorro as inúmeras e diferentes cadeiras nas quais me sentei como espectador e crítico para assistir espetáculos nos quais as palavras foram minhas companheiras de viagem. Ainda no que se refere a essa imagem de uma cadeira vazia, penso no fenômeno cênico não apenas como um ato de contemplação, mas como um convite à escuta. Palavras como embarcações poéticas e políticas para abordar questões emergenciais, como memória, história, conflito, violência e colonização. Da abertura da programação com o trabalho Suíte 2, de Joris Lacoste, ao encerramento com a instalação cênica A Gente Se Vê Por Aqui, do artista plástico Nuno Ramos, a palavra navegou em suas múltiplas possibilidades de instaurar deslocamentos, desnaturalizações, reflexões críticas e denúncias sobre nossa situação atual.

Em Suíte 2, a palavra surge como narrativas em disputa, num mundo feito Babel, no qual discursos macropolíticos se sobrepõem às nossas existências minoritárias. Entre pronunciamentos oficiais e diálogos mais cotidianos, a palavra performa a coexistência de sonoridades distintas que oscilam entre medo, opressão, tentativas de comunicação e desejos de encontro. Numa sinfonia entre o universal e o singular, algumas palavras legislam sobre nossos corpos enquanto outras não passam de sussurros e apelos de socorro. Na encenação de Lacoste, um tapete sonoro se estabelece, entrecruzando os sentidos e os absurdos que habitam o campo da palavra. A palavra surge como corpo que age, determina, presentifica, rotula e evoca até mesmo o que se encontra inaudível. Existem palavras de fato escutadas como declarações importantes e outras que são desprezadas ou não passíveis de consideração. Muitos falam, poucos são escutados. Muito se diz, quase nada se escuta. O que ainda pode a palavra hoje?

A palavra como depoimento, testemunho e documento está presente em Campo Minado. Palavra como mediação para a experiência traumática da guerra. Palavra como tentativa de reconciliação com a história. A palavra falada como também a palavra escrita aparecem ainda em cartas resgatadas pelos ex-combatentes argentinos e ingleses, que os auxiliam para a saída de um campo minado para um campo narrado. A palavra liberta? A palavra é posicionada em cena entre o passado e o presente. As palavras possíveis e as não alcançáveis pelo horror do real.

Ao retomar a imagem da cadeira vazia sobre o mar, é como se os artistas nela se sentassem para pescar e fisgar as palavras-sensações-memórias a serem utilizadas em seu teatro documental. As palavras como relato não somente dos fatos ocorridos, mas também do processo de criação do espetáculo, numa operação metateatral. No debate realizado após uma das apresentações de Campo Minado, pude escutar as palavras não pronunciadas e interrompidas. Uma outra cena ali se materializava: a palavra não dita, as sensações não elaboradas, a tensão ainda viva e recalcada no exercício cênico. Mas talvez as palavras tenham seus limites. Na minha visão (ou será escuta?), ao acompanhar o debate, as palavras ali excederam o campo poético, revelaram um pouco do que sobrou e do que foi necessário deixar partir nas águas revoltas do esquecimento.

Em Hamlet e sal., as palavras suscitam políticas da solidariedade. Se em sal. Selina Thompson, por meio de sua palavra revoltada, cria um ritual de cura pessoal e coletiva ao compartilhar sua busca de identidade e pertencimento histórico pelos oceanos migratórios de uma memória negra diaspórica, Julian Meding se alia a Boris Nikitin para, juntos, roubarem as palavras estilhaçadas e dolorosas de Hamlet em seu drama de “ser e não ser” alguém bem ajustado às normas de uma sociedade que a todo custo tenta anular as diferenças, desvios e subjetividades fora dos padrões estabelecidos.

A grande pedra clara que Selina, com seu corpo negro, vigorosamente destrói em nossa presença, pode ser lida como o histórico e solidificado discurso colonial que se perpetua secularmente por meio de palavras de ódio, racismo e exclusão geopolítica que assolam as vidas dos sujeitos afrodiaspóricos. A palavra, nesses dois trabalhos, é corpo vivo e pulsante. Como poéticas cênicas da perturbação, tais performances se utilizam da palavra como golpe certeiro sobre as práticas naturalizadas de violência social e econômica sobre os corpos marginalizados. Não por acaso, em Hamlet, as imagens de pessoas adoecidas e asiladas nos confrontam com a finitude e vulnerabilidade a que todos nós estamos expostos, mas insistimos em negar. Nesse ponto, a palavra cantada de Meding experimenta um momento de pausa para nos oferecer um silêncio constrangedor.

Bertrand Lesca e Nasi Voutsas colocam a palavra como negociação em Palmira. Importante destacar que o trabalho apresenta pouca dramaturgia textual, já que as palavras aqui funcionam como armadilhas e são propositalmente escolhidas para justificar violências, além de demarcar territorialidades e muros. A palavra não ultrapassa a possibilidade de se constituir como matéria capaz de criar entendimento entre mundos diferentes. Pelo contrário, a palavra nesse espetáculo-assembleia busca determinar quem é o civilizado e quem seria o bárbaro. As palavras se impõem pela força agressiva dos corpos. Percebo, em Palmira, a palavra como metáfora e alegoria para se tratar das dificuldades de relação, seja entre pessoas e/ou países. A palavra como tradução e em seu bojo a necessidade perversa de se efetuar discursos opressores. Ou você fala minha língua ou então não há possibilidade de acordo e convívio humano. Nas entrelinhas da palavra, surgem hiatos entre o que se fala e o que faz. Da violência praticada à violência discursiva. O que mais fere e ameaça, o martelo real ou o martelo discursivo? Em Palmira o perigoso poder da palavra é o que justifica a destruição, pela lógica do ‘nós contra eles’. Se em sal., a palavra colonizadora é de alguma forma denunciada e triturada, em Palmira os restos das vidas e memórias quebradas atuam e servem para a solidificação de um discurso-pedra fundamentalista. Como se os outros, os estrangeiros (feito os restos de pratos) fossem expulsos e varridos da minha área conquistada.

O excesso de palavras também extenua nossos sentidos. Em Árvores Abatidas, do encenador polonês Krystian Lupa, palavra, imagem, ação e atmosfera entram em combate. Palavras que nos abatem em sua áspera e irônica revelação de um processo de decadência e degradação de uma determinada classe artística que se encontra em intensa luta para não se deixar cair e ser devastada pelo mundo do consumo. Espetáculo de longa duração no qual as palavras seriam espécies de labirintos a nos confundir, nos desafiar, nos provocar. Quando já me encontrava rendido ao fúnebre jantar servido com palavras vazias e desesperadas, era como se, pelo excesso das horas vivenciadas naquele teatro, eu já pudesse escutar não mais uma dramaturgia textual apenas, mas realizava a leitura sinestésica da obra literária de Thomas Bernhard. Em Árvores Abatidas a palavra experimenta travessias poéticas diferenciadas, ora como linguagem naturalista e em outros momentos como um espetáculo expressionista.

E quando as palavras não ancoram em porto algum? Em País Clandestino, fiquei com a sensação de que as palavras se perdem e se estrangulam no necessário equilíbrio entre memória coletiva e memória pessoal. As palavras não se afundam no mar da história, permanecem na superfície das experiências juvenis. Elas voam e se tornam discursos frágeis que não me possibilitam habitar uma certa clandestinidade, mas pelo contrário, são reveladoras das histórias privadas dos artistas envolvidos. Ainda que “caminhando contra o vento”, tornam-se mais “lenço do que documento”. É como se as camadas mais profundas não conseguissem ganhar espaço, volume e densidade.

Por fim, me sentei na cadeira para vivenciar o trabalho A Gente Se Vê Por Aqui, de Nuno Ramos. Minha avaliação desse espetáculo está incompleta e comprometida, pois só pude acompanhar as primeiras horas iniciais, e o trabalho teve duração de vinte e quatro horas ininterruptas. Os dois performers, ao reproduzirem na íntegra a programação da Rede Globo, provocaram deslocamentos e estranhamentos em nossa maneira de escutar os noticiários jornalísticos, além de revelar como verdades são construídas pela força dos discursos. Para mim, era como retornar ao espetáculo de estreia da MITsp: uma nova suíte ou sinfonia midiática criada para se tensionar discursos políticos, palavras de ordem, manipulações de todo tipo, para mostrar como uma notícia, com sua trilha sonora escolhida, nos aliena e nos condena a uma posição passiva, asséptica e desencarnada diante dos fatos da vida real. A partir dessa performance, é possível pensar a tela da televisão como uma caixa de ressonância e máquina ideológica que edita e determina o que vamos ouvir, do que seremos informados e quais assuntos teremos para discutir no dia seguinte. No espaço cênico, contudo, surge a possibilidade de uma possível subversão e confrontação, pela ironia e pelos recursos dramáticos, dessas pretensas imagens e palavras com as quais somos diariamente colonizados.

No trabalho dos performers predominava a chave do humor, o que gerava o consequente riso da plateia. A meu ver, em algumas cenas, o risco da banalização ameaçou a potência crítica da intervenção. Até que, num certo momento, tal dinâmica foi quebrada, pela mudança enfática dos artistas ao relatarem um caso de violência infantil, substituindo a paródia pela indignação, num corte incisivo sobre a regularidade cênica que se acumulava. Até porque deve haver diferenças entre uma poltrona de casa direcionada frente à tv e uma cadeira no teatro diante da presença humana.

Na MITsp 2018, a palavra foi motor para atravessamentos tanto estéticos como políticos, além de servir como material problematizador das narrativas que tentam imperar no mundo. Vale ainda destacar as ações dos Olhares Críticos nas quais a palavra irrompeu, em sua dimensão pública, contra todo tipo de interdição, censura e silenciamento, e o que foi ausência nos palcos dos teatros se configurou como presença insurgente nos debates e conversas. Palavras que nos conclamaram mais à escuta do que à fala. Mais à reflexão do que a reação defensiva. Palavras que apontaram e feriram nossos lugares e assentos de privilégio. Agora posso finalmente me levantar da cadeira e abandoná-la, para que possa ter um tempo suficiente de autocrítica e coragem de renovação. E, assim, vislumbrar futuramente as novas palavras e cenas a surgir e ocupar o horizonte que está por vir.

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