Texto escrito a partir do espetáculo Árvores Abatidas, por Cesar Ribeiro (artista convidado, diretor do grupo Garagem 21/SP)

O capitalismo transforma tudo e todos em produtos, mediados pela lógica dos produtos, culminando em uma coisificação que acaba se configurando como parte de um sistema de violências diretas, estruturais e culturais. Inserido no universo da mercadoria, cabe ao humano lutar contra a desumanização. Ao mesmo tempo, cabe a esferas como a arte provocar um desequilíbrio nessa normalidade destruidora e propor alternativas para minimizar as desigualdades, rompendo uma estrutura que privilegia camadas da população e marginaliza outras, em contraponto a uma cultura utilizada para travestir de natural aspectos da realidade provocados por essas práticas. Contudo, se a arte e o artista são reflexos desse sistema e vivem sob a normatização decorrente dele, como projetar a utopia?

O encenador polonês Krystian Lupa mergulha na obra de Thomas Bernhard para dar vazão a essas questões por meio da história de um grupo de artistas que organiza um jantar de reencontro ao qual comparecerá um grande ator do Teatro Nacional, que ocorre após o suicídio e enterro da coreógrafa Joana. De caráter hiper-realista, entrecortado em momentos por aspectos oníricos e simbólicos, a encenação é dividida em dois atos e centrada na visão do escritor Thomas – ora entendido apenas como escritor, ora como Thomas Bernhard, ora como o próprio Lupa e ora, talvez, como uma alusão a Tadeusz Kantor, ao observar de longe a cena. No primeiro ato, enquanto todos aguardam a chegada do ator, o escritor permanece na antessala, examinando os resquícios de humanidade em que se converteram seus amigos, envoltos em diálogos e ações vazias. Já no segundo ato tem início o jantar, marcado pelo discurso egocêntrico do ator sobre suas próprias qualidades e as do Teatro Nacional e as dificuldades de interpretar alguém como Ekdal, de O Pato Selvagem (Henrik Ibsen). À sala de jantar, espaço das convenções, são contrapostos espaços íntimos, como a cozinha, de onde sai a quase muda empregada, o banheiro, visto sempre em vídeo e no qual as normas do discurso lisonjeiro são quebradas, a espécie de igreja na qual se revela a nudez de Thomas e Joana e a casa de Joana, momento em que a deterioração material mostra a que são relegados aqueles que enfrentam o sistema – espaços revelados por meio da bela cenografia giratória realizada por Lupa.

Configura-se uma espécie de festa para a morte: a rebeldia dos artistas quando jovens e a tentativa de formular uma arte capaz de transformar a sociedade são substituídas pelo enquadramento diante das barreiras enfrentadas e pela busca de posicionamento social. Assim, o tempo e o espaço aparecem não como condição fundamental para a vida, mas como processo de aniquilamento de ideais e práticas, como representação da perda da utopia coletiva para a entrada na distopia individual conhecida como normalidade. Nos momentos finais da peça de quase cinco horas de duração, em que os conflitos provocam o desnudamento do véu de proteção, os personagens confessam a desistência ao resgatar uma imagem embaralhada dos sonhos do passado, em um olhar compassivo para sua desumanidade: se hoje eles são ruínas de uma utopia, são igualmente prisioneiros de um sistema que compensa a fraqueza e pune a força, corpos domesticados para utilização pelas esferas de poder.

Logicamente, Lupa está traçando uma leitura da situação do teatro polonês e da sociedade polonesa, atravessada por uma onda nacionalista e conservadora que também se dirige aos artistas, por meio, entre outros fatores, da tentativa de proibição de obras na justiça. Contudo, é impossível não fazer cruzamentos com o Brasil, que vive um momento de expansão do conservadorismo, aumento de agentes religiosos na política, esfacelamento dos conceitos de público e privado e estigmatização dos artistas. Isso dentro de um contexto que parece não fornecer alternativa: a arte precisa de modos de subsistência, mas como sustentar sua independência e sua função social se, por um lado, ela multiplica o vínculo com o capital quando recorre aos departamentos de marketing e, por outro, depende de políticas públicas que mudam conforme as tendências políticas no poder?

Se o filósofo esloveno Slavoj Žižek estiver correto quando afirma, em seu livro Violência, que “é a dança metafísica autopropulsiva do capital que dirige o espetáculo, que fornece a chave dos desenvolvimentos e das catástrofes que têm lugar na vida real”, parece que só há uma resposta possível: a luta para “humanizar” o capital e o diálogo para que o Estado tenha real entendimento de seu papel de gerenciador da coletividade, e não de interesses privados e transitórios. Ou seja, sem que prática e teoria se anulem, como usualmente ocorre ao nosso redor, diante de um esgotamento de possibilidades de subsistência ou simplesmente em decorrência do acesso à oferta.

Insurreição e recusa são as palavras.

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