Crítica escrita a partir do espetáculo sal., por Juliano Gomes (Revista Cinética)

sal. se escreve começando com minúscula e sucedido por um ponto. Ponto que é uma pausa, uma interrupção, mas também um grão, talvez a representação da pedra de sal, mote central no conceito e no palco do trabalho escrito e interpretado por Selina Thompson e dirigido por Dawn Walton. O desejo de ser substantivo comum – de sal como substância comum, como elemento químico que torna o mar mar, que o faz e se desfaz nele, essa vontade de ser canal, elemento de passagem – é um dos eixos mais nucleares da obra. Neste país, onde a diáspora negra deixou alguns milhões de pessoas ao mar e à terra, a narrativa sobre este processo – de que sal. é um belo exemplo – ainda é algo por fazer, em relação à amplitude deste processo na constituição do país. sal. renova a evidência desta ausência, e reafirma ainda mais a lacuna do compromisso coletivo em torno desta investigação de nós mesmos. Já é mais que evidente que este investimento não pode ser somente temático: é imprescindível que as instituições se engajem na não reprodução dos mesmos corpos, dos mesmos atores, dos mesmos donos do poder, do prestígio, do orçamento e da razão. Ver sal. com uma plateia majoritariamente branca, na avenida que concentra o núcleo financeiro do continente, numa instituição de um proeminente banco privado, é mirar todo um maquinário histórico e necropolítico renovado. À cada nova martelada na pedra de sal estilhaçava-se a síntese entre a dor sofrida e a violência necessária para a construção de um porvir não cínico. Se o papel do teatro é revelar seu contracampo – o teatro do mundo, é evidenciar suas cenas, sal. em chão atlântico brasileiro, cumpre tal função e aponta caminhos. A textualidade obstinada do trabalho de Thompson, este poema encarnado que é o fio da criação, propõe um tipo particular de narrativa entre a descrição, o devaneio, a memória, o manifesto, a investigação histórica e a ladainha. Trata-se, literalmente, de um canto de trabalho. Campo onde a dimensão informacional é inapreensível em sua totalidade. A diáspora destrói a ideia de totalidade. A forma torrente do texto entoado coloca a impossibilidade de decodificar integralmente enunciados e nos obriga a sintonizar com a expressão, de uma forma ampla e complexa. O lamento negro, em toda sua extensão imaginativa e inventiva – que vai do blues americano à morna cabo-verdiana, do Malandramente a Matana Roberts – é um continente cultural e um espaço ao mesmo tempo de inscrição da negritude e de produção multipoética. Isso é literal na cena: o tempo todo Selina encena o atravessar, o atravessar-se, por outras, por outros. O dispositivo de refazer invertido o trajeto diaspórico parte desta premissa de uma expressividade e um modo de ser que atua em níveis variados. A viagem de 2015 é ao mesmo tempo um navio negreiro, a viagem de seu pai, a morte de milhões, a morte íntima de si no racismo cotidiano, a perenidade do loop do apocalipse para quem não é dono da norma, é inglesa, é jamaicana, é filha legítima, é filha adotada, é biológica, é necrológica. Se o corpo da ‘necronorma’ é o homem branco de meia-idade, o corpo-imagem da negra gorda é uma síntese do corpo que não pode mais ser reservatório silencioso de narrativas. Não é mais razoável que a presença de um espetáculo como esse, de uma performer como Thompson, ocupe um lugar de exceção dentro de uma programação ou de um panorama. sal. está em todo lugar, ao nosso redor, dentro e fora de nós: é Grace Passô, é MC Carol, é Jovelina, é Jojo Todynho. Há travessa. O continente é minoria. A sobrevivência não programada dos corpos negros necessita de um compromisso coletivo para invenção de um futuro radicalmente outro. Isso só nasce a marretadas. O sangue dissolvido no mar não desaparece, espalha. O triângulo luminoso (Europa, Áfricas, Américas), que não por acaso está também na Mulher do fim do mundo da garganta de Elza Soares, é a base geométrica para a reversão do seu sentido original ao assumirmos que a ideia de mundo como produzida pelo necrocapitalismo racial esgotou sua possibilidade de produção de futuro (não por acaso ela só produz fins: das artes, das ideias, dos repertórios, puro loop). Esse modelo que sal. e todo esse oceano cultural propõem é um modelo no qual um corpo em cena é passagem de muitas. O que se tem chamado eventualmente de identitário é na verdade uma fenda por onde passam multidões de corpos históricos, ancestrais, divinos, mundanos: o redor do corpo de Selina no palco é uma densa reunião de formas de vida, de passados, futuros e aléns. É rio correndo imenso. A memória como um dispositivo criativo endereçado ao futuro. Cada estilhaço do sal é um big bang multidirecional de galáxias que talvez seja a encenação mais literal de uma ideia de negritude diaspórica: arremessada de uma partícula inicial, tornada uma parte outra, onde o encaixe já não é mais possível, mas feita de uma substância comum, mas irremediavelmente despedaçada, nascida de uma fratura. Cada grão, uma travessia. Essa multirruptura é ao mesmo tempo um monumento da ausência e da fecundidade – esse par forma o mote poético de grande parte das artes negras, da síncope do samba ao traço de Basquiat. É preciso fazer óculos permanentes da lente sobre a qual fala o texto da peça. A ótica do não esquecimento, essa pedra de sal que cada espectador leva na mão, é a performance sólida da materialidade deste drama que nada tem de transcendente. É um convite para destruir o que está assentado historicamente no poder, no palco, para poder fazer passar essa multiplicidade de vozes. Esta marretada é feita de dor e de graça. Precisa das mãos de todas e todos, porque o sal já se espalhou no sangue, está dentro de nós, ao redor, em concentrações variadas: é substantivo comum, que conserva, dissolve e dissocia. É substância desenfreada.

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