Crítica escrita a partir do espetáculo Palmira, por Cesar Ribeiro (artista convidadodiretor do grupo Garagem 21/SP)

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman afirma, em Modernidade Líquida, que o que distingue a modernidade dos modos anteriores de convívio humano é “a compulsiva e obsessiva, contínua, irrefreável e sempre incompleta modernização; a opressiva e inerradicável, insaciável sede de destruição criativa (ou a criatividade destrutiva, se for o caso: de ‘limpar o lugar’ em nome de um ‘novo e aperfeiçoado’ projeto; de ‘desmantelar’, ‘cortar’, ‘defasar’, ‘reunir’ ou ‘reduzir’, tudo isso em nome da maior capacidade de fazer o mesmo no futuro – em nome da produtividade ou da competitividade)”. Isso estava no ideal de belo de Hitler. Está no ideal de belo do Estado Islâmico. E está em cada um de nós que almeja um padrão de bem-estar coletivo. Porque projetar o ideal também é projetar a nós e ao nosso grupo, com critérios que muitas vezes não são acordados com o outro. Afinal, nossa história é destruir a cultura alheia para que a nossa prevaleça ou simplesmente adaptá-la conforme interesses. A fileira de mortos deixada no caminho é mero detalhe diante da ânsia de progresso e civilização.

A mecânica que embasa Palmira, do francês Bertrand Lesca e do grego Nasi Voutsas, é de reflexão sobre essa política de destruição e esvaziamento de sentidos, até mesmo em seus procedimentos estéticos: as técnicas utilizadas têm como base o humor, o clown e o espetáculo midiático, mas o humor gera desolação, o clown se realiza pelo jogo de violências e o espetáculo nos transforma em cúmplices da opressão. A ação se inicia com restos de um prato espatifado no chão, trazendo a simbologia da arte, da cultura e da história destruídas em Palmira pelo Estado Islâmico, que ocupou o teatro da cidade para o espetáculo da execução, fuzilando soldados sírios. É o sinal para que comece o conflito entre o ocidental, que vem “pacificar” o território, e o oriental, que “não colabora”, entre uma ideia de cultura e uma ideia de barbárie. Trata-se de um jogo de múltiplas possibilidades de leitura, no qual as palavras “guerra” e “Palmira” nunca são citadas, o opressor é cordial, o oprimido é passional e não são feitas alusões claras a ocidente e oriente – ou seja, não se evidencia a relação de dominação nem as representações que ocorrem em cena. Então se trata de complementar a cena de acordo com o referencial de quem vê.

A desespetacularização é o que mais impacta: o palco está nu, os atores operam o som de um notebook colocado em uma mesa, a estrutura do teatro é revelada, as roupas são do cotidiano, os objetos são símbolos de construção e destruição, como martelo, escada, louças partidas e cadeiras. O que se vê não são propriamente cenas, mas aproximações que culminam em violências, construindo rosto e nome para o que se está acostumado a ver como videogame: as imagens midiáticas da guerra quase não têm face, os mortos são tratados como números e os carrascos recebem nomes de países ou regiões, mas não de pessoas. Desse modo, retira-se a relação “sujeito e objeto”, como se essa despersonalização eximisse a culpa por eximir a consciência da ação, como se pode observar em qualquer entrevista de militares que realizam ataques à distância.

Em Palmira, a violência não apenas possui nome, como também um nome que não é o de personagens, e sim o dos próprios atores. Nesse desespetáculo da ruína, o público, sem a mediação da convenção teatral, torna-se coparticipante da destruição: as luzes da plateia estão quase sempre acesas e o olhar da dupla é quase na totalidade direcionado aos espectadores, convocados a escolher um lado. E nisto talvez esteja o mais desolador: sendo uma plateia domesticada por séculos de cultura, quase se abandona o espírito crítico para interceder no conflito, sem buscar a igualdade, e sim a continuidade do “show” – a continuidade do horror. Assim, nosso silêncio e nossa voz compactuam com a hostilidade, apesar de esconder o martelo (a arma), fazendo com que nossa vontade de paz perpetue a guerra. Somos então igualmente invasores.

No final, o “bárbaro” Nasi implora a desocupação do território, já tornado completamente ruína. Sem possibilidade de construir uma relação em que a repressão não se faça presente, Bertrand abandona o palco. É tempo de recolher os cacos, juntar os fragmentos de história e preparar o futuro, mas imbuído de rancor e desejo de vingança. Ao fundo, ouve-se o refrão “God only knows what I’d be without you”.

Certamente, um deus preenchido de apatia, atambia e afasia – como diz Samuel Beckett – nada saberia nem poderia dar resposta alguma. Cabe ao humano elaborar processos de construção e ressignificação da coletividade capazes de abarcar modos de vida diversos daqueles aceitos pelas camadas da população que erguem suas vozes para proclamar verdades absolutas. Pessoas que precisam da aniquilação do outro para configurar o mundo idealizado. Mas qualquer mediação que não pressuponha a livre existência do divergente não pode ser tolerada, em nome de nenhum deus. E nisso talvez esteja outro ciclo de violência.

Compartilhar