Texto escrito a partir do espetáculo Árvores abatidas, por Renan Ji (Questão de Crítica/RJ)

A arte está morta desde que percebemos que, num curso para atores do Teatro Nacional, nenhum apareceu para as aulas. Os artistas estão sentados na sala de estar, protegidos pelo vidro que dá para o jardim, enquanto fumam e bebem para queimar o tempo e afogar a mediocridade. Vejamos que não assumem a morte de forma plena – o que não deixaria de ser um gesto agridocemente poético, um canto do cisne –, mas se encontram sentados em círculo como numa soirée à espera de assuntos importantes. O silêncio pesa e o tédio é exasperante, depressivo. Entretanto, os artistas parecem não se dar conta do fracasso e resistem na cena, chorando o suicídio de uma amiga antiga da boemia artística, e esperando para jantar com um ator do próprio Teatro Nacional.

As cenas de Árvores Abatidas, de Krystian Lupa, são quase antidramatúrgicas, porque o pensamento cênico que se concretiza no palco remete a uma própria falha do pensamento estético. O que se vê é uma arte consagrada e tediosamente amparada pelo sistema. Ou seja, o que se vê é teatro, com personagens e cenário, mas algo estaca e para no tempo. Os atores – os artistas, a arte – estão parados, fumam e bebem, e com isso estar no teatro se torna deprimente tanto para aqueles que estão na cena como fora dela.

A crise artística está presente nas falas e histórias de todos: artistas criativamente bloqueados, artistas vendidos, outrora amados e potentes, hoje odiosos – porque o tempo não perdoa. O “outrora” aqui é importante: existe um certo moralismo estético e uma nostalgia da juventude no texto de Árvores Abatidas, como se os bons tempos fossem os de delírio juvenil, de viço das plantas jovens. Hoje, as “árvores abatidas” convivem com jovens que riem de tudo e cobiçam seus cargos públicos e verbas para cultura. O narrador, um dos personagens que persiste do lado de fora da casa, analisa e acusa a decadência de uma arte que desistiu de superar a si mesma, condescendente com a adulação e o conforto.

No entanto, notemos a persistência desse narrador do lado de fora da casa. Algo persiste nessa peça nascida para cantar sua própria morte. Há algo de resiliente numa escritora bêbada em crise que se equilibra em sapatos de salto embaraçosamente altos. O que move um grupo de amigos – que não partilha mais da criatividade de antes, ou que sequer mantém ainda o impulso criativo – a continuar na sala de estar? Embriagados, tentando desesperadamente se agarrar a uma vida “estética” que se revela fria, ou lamentando a perda de valores da arte, os personagens-artistas permanecem em cena criticando o meio profissional, uns aos outros, cantando doloridamente seu próprio declínio, a tal ponto que nossa sensibilidade passa a se tornar ela própria um pouco embriagada, fumante, sonolenta. Os juízos sobre a morte da arte e as memórias de um tempo que não retorna se misturam difusamente. O desconforto social – do narrador e de nós mesmos – diante de intelectuais artistas decrépitos reflui em ondas e, subitamente, passamos a dançar ridiculamente com esses mortos-vivos. Mais uma taça, por favor, mais um cigarro.

A anomia, a decadência, os longos momentos de silêncio, além do moralismo artístico amplificado e caricato, são reduzidos a um falatório, a uma fala pastosa que ora é vítima de cortes sensoriais – explosões sonoras, gritos, giros do palco – para logo em seguida ser retomada com um comentário inócuo sobre a última montagem de Ibsen. Deparamo-nos com uma peça cujo dado constitutivo é a anomia do palco e do público. Mas não há por que temer o tédio: talvez seja necessário perder um diálogo aqui, outro acolá, embriagar-se um pouco com as palavras da peça. O trote lento da narrativa de Árvores Abatidas costura ritmos vagarosos, levados a cabo por sequências musicais de fundo que raramente se chocam com o temperamento da cena. Na maioria das vezes, as músicas embalam uma festa que não culmina na revolta catártica nem na melancolia transcendente, mas cuja persistência etílica e discursiva assume tons cada vez mais patéticos e, talvez por isso mesmo, poéticos.

Árvores Abatidas é um colosso deformado, recheado de sobras que embriagam os sentidos, e arestas que arranham a percepção do espectador. Mas é preciso continuar o falatório, a bebida, o cigarro, a música. Como Gilles Deleuze afirma sobre o alcoólatra, é preciso avaliar o que se pode aguentar, sem nunca desabar. Nesse sentido, a próxima dose, o próximo comentário maldoso sobre o circuito de arte, o “derradeiro” juízo de valor – só serão válidos se for para manter a festa rolando. E da profunda desilusão – assim como da embriaguez muitas vezes surgem lágrimas e reconciliações – aparece um último lampejo de amor por tudo isso: a arte que se viveu, ou a tragédia daquilo que se vive.

Em certo momento da peça, fala-se que a natureza é perfeita e está em constante equilíbrio. Porém, a personagem Joana alerta para o fato de que o movimento, para existir, precisa surgir de um desequilíbrio. Todo passo precisa de um leve tombar do corpo. Essa mesma artista também fala que, se não é possível dar o melhor de si, que se dê o pior, que pelo menos já é “alguma coisa”. O teatro de Árvores Abatidas parece investir nesse pior. Mas, talvez, para que no ápice do desequilíbrio, algo seja posto em movimento, nem que seja para uma dança embriagada com aqueles que amamos e odiamos – muitas vezes ao mesmo tempo.

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