08/03/2015 | Daniel Toledo

Estamos em Cherkazy, na Ucrânia. O ano é 2008, e a estátua de Lênin – imponente vestígio da dominação soviética – acaba de ser retirada de uma das principais praças da cidade. Ao contrário do que se poderia pensar, entretanto, não é a liberdade que ganha espaço no país, mas sim uma nova corrida de diferentes impérios igualmente interessados em dominá-lo, a partir de ações que se estendem desde a política internacional até a vida cotidiana de seus habitantes.
Não por acaso, certamente, foi esse o contexto escolhido pelo diretor ucraniano Andriy Zholdak para recriar, à sua maneira, a trajetória de Woyzeck, personagem que dá título à peça mais conhecida do alemão Georg Büchner. Apresentada pela primeira vez em 2008, mesmo ano da remoção da estátua, a montagem de Zholdak vai ao encontro de uma cidade cuja história é marcada por cruéis experimentos sociais e econômicos do estado soviético – experimentos que em muito se aproximam da dieta de ervilhas à qual Woyzeck é submetido no drama de Büchner e que acaba lhe provocando algumas visões apocalípticas. “Woyzeck vê coisas demais”, escuta-se, em certo ponto do espetáculo.
Como se tivéssemos sido submetidos à mesma dieta do personagem, também nós, que assistimos à montagem de Zholdak, vemos coisas demais. Dispostos ante uma encenação permanentemente marcada por justaposições e simultaneidades, temos acesso a três casas de vidro e três grandes telas de projeção onde múltiplas imagens se dão a ver. Constitui-se, então, uma paisagem cênica e dramatúrgica bastante perturbadora, em que sobressaem a qualidade performática das interpretações e a criação de sentidos a partir de contrastantes composições entre cenas e imagens digitais.
Por meio de alegorias mais ou menos diretas, vemos, por exemplo, as obscenas relações estabelecidas entre a nação ucraniana e os impérios que a ela ainda hoje se impõem. Em um complexo trânsito entre as escalas da nação e do cidadão, imagens documentais e ações cênicas igualmente chamam atenção às precárias e violentas condições de vida dos habitantes do país – dentre os quais figuram, ali, Woyzeck, sua esposa e seu filho. Mas não é somente a esta família que se refere a peça, alerta o diretor, logo no início da montagem. “São 15 milhões de pobres”, lê-se em uma das telas de projeção, revelando estatística que corresponde a cerca de um terço da corrente população ucraniana.
Com ares de ficção científica (talvez inspirados pelos próprios experimentos aos quais o personagem é submetido), parece interessante ressaltar que o espetáculo se apresenta ao público exclusivamente em tons de preto e branco, chamando atenção a uma realidade dura e fria em que a graça e a beleza estão bem longe do primeiro plano. As únicas cores que temos ali vêm das pálidas peles dos atores e de alguns animais empalhados que ornamentam o cenário.
A animalidade, aliás, é outro elemento que rapidamente se alastra à cena, a partir de personagens que roncam, uivam e coaxam, ostentando, em alguns momentos, chifres e orelhas animalescas. Se a caça é apresentada como um hábito bastante comum na Ucrânia, também as relações humanas parecem ter sido contaminadas: tanto Woyzeck e sua esposa quanto outros personagens apresentados com menor detalhe frequentemente cruzam o palco, traçando diferentes rotas de fuga daqueles que parecem querer capturá-los.
“Eu quero ser livre. Quero viver em um país livre. Quero ter uma vida noturna”, afirma Maria, a esposa de Woyzeck, pouco antes do anúncio do início do segundo ato do espetáculo. Usando capacetes de moto, os dois desdobram os delírios de Woyzeck a outras alturas. Ao silenciar por alguns instantes as permanentes negociações políticas no gabinete do governo e nos espaços da elite, vislumbram uma possível fuga a partir de um encontro romântico em que novos horizontes, ao menos instantaneamente, parecem se abrir. Se as fronteiras territoriais parecem sitiadas e dominadas por outros impérios, a fronteira com o céu lhes parece mais amigável e promissora. “Não fique em silêncio. Fale algo”, pede a mulher. Mas Woyzeck nada pode prometer em meio a uma realidade social na qual tanto o amor quanto a liberdade não passam de utopias tão distantes quanto o céu e as estrelas.
Não tarda, contudo, até que a opressora realidade social novamente se imponha aos personagens, e Maria, tal qual a própria Ucrânia e seus chefes de estado, se deixe envolver por fios vindos de impérios políticos e econômicos que desde o início da peça rondam sua trajetória. Antes de ceder, contudo, ela oferece ao filho um sábio conselho: “Feche bem os olhos”, diz, em possível referência aos riscos de se enxergar demais.