16/03/2015 | Luciana Romagnolli

O debate sobre A Cena Russa Contemporânea, realizado no Sesc Consolação no dia 12 de março, foi marcado por uma ausência significativa: a do crítico russo Roman Dolzhansky. O motivo já adianta algo sobre o tema em discussão. Roman não pôde vir ao Brasil porque participou da defesa do réu no julgamento do encenador russo Timofei Kuliabin, cuja montagem de uma ópera de Wagner foi denunciada por um representante da igreja ortodoxa russa sob acusação de ofender os sentimentos religiosos.
“Essa situação já mostra bastante bem a condição na vida artística e teatral russa, e como no teatro russo, que viveu 70 anos sob uma vigilância e uma censura horrorosas, em que se tinha de usar metáforas para falar a verdade, a história se repete”, observou a atriz Elena Vássina, que compartilhou a mesa com o diretor de Opus Nº 7, Dmitry Krymov, e a mediadora Arlete Cavalieri.
Durante a sua fala, Vássina apresentou diferentes vetentes notáveis no teatro russo atual. A primeira seria a representada em por Yuri Butusov (diretor de A Gaivota) e se caracteriza pelo importante diálogo com obras clássicas. “Quando as imagens e metáforas visuais, junto de interpretações de atores, claro, tornam-se base da linguagem expressiva”, definiu.
“Em Moscou, há 121 teatro de repertório, ou seja, companhias estáveis. Apresentações a partir de terça-feira – segunda é o dia de férias – e os espetáculos ficam em cartaz às vezes dez, vinte anos, até mais. Os atores que trabalham nessas companhias estáveis são funcionários públicos. São artistas, mas empregados da prefeitura. Há muitos teatros, como o que trabalha Krymov, que pertencem à prefeitura, além dos federais. E um diretor pode montar durante um ano vários espetáculos”, contextualizou a atriz.
Ainda nessa primeira vertente identificada a Butusov, de quem Vássina destacou a montagem de Rei Lear, a base da linguagem “é o tempo teatral”. “Esqueça do tempo cotidiano. O encenador opera como um maestro de orquestra sinfônica — ideia que já foi trabalhada por Meyerhold, um dos fundadores do teatro russo moderno, e Stanislavski em peças do Tchekhov, que interpretou como sinfonias”, disse. Outro encenador de destaque é Rimas Tuminas (1952), diretor artístico do Teatro Vakhtángov, de origem lituana — assim como o também lituano Eimuntas Nekrosius é “um dos pais da encenação russa moderna”.
Os clássicos também estão no horizonte do diretor Konstantin Bogomólov (1975), apresentado por Vássica como o avant-terrible do teatro russo atual. Exemplificando com outro Rei Lear, a atriz comentou que as montagens de Bogomólov “criaram grandes escândalos” e já sofreram tentativas de censura e protexto religioso, inclusive com a invação do palco. “A ação desse Rei Lear começa em 1940, à véspera do inicio da invasão de Hitler, e todo contexto é stanilista e fascista. Um espetáculo com jogo intelectual em que se tem de desvendar muitas associações que aparecem. Papéis masculinos interpretados por atrizes mulheres e vice-versa”, cometou.
Kirill Serébrennikov (1969) é mais um “enfant-terrible”, com mais tempo de carreira, segundo Elena Vássina. “Extremamente produtivo”, informou a atriz, citando filmes e espetáculos. “Ele define uma vertente muito importante na cena atual russa, de um teatro político. É professor da Escola de Arte Dramática do Tteatro de Arte de Moscou e fundou o sétimo Teatro de Arte de Moscou com seus alunos”. Entre os trabalhos, está Otmorózki, de Zakhar Prilépin, sobre jovens marginais envolvidos em protestos e revolta, que não cabem na realidade”, disse. Com os alunos, venceu o prêmrio Máscara de Ouro, dos mais importantes naquele país.
Para encerrar, Vássina ccitou como terceira vertente o Teatro.doc, fundado em 2002 por Elena Grimona e Mikhail Ugaróv. “Ao contrário das outras companhias de que falei, municipais ou estatais, esse teatro é absolutamente independente. E trabalha com material documental de entrevistas gravadas nas ruas com diferentes representantes da sociedade, mas o texto não é tão importante, mais importante é como os fatos e depoimentos são montados, as pausas entre os depoimentos”, definiu. Nessa mesma linha está Iúri Muravítski, diretor de Acenda meu Fogo, no qual Jim Morrison, Janis Joplin e Jimi Hendrix aparecem como músicos que vivem atualmente em Moscou, a partir de depoimentos reais gravados.
Ao se situar nesse panorama teatral da Rússica, Dmitry Krymov sentenciou: “Stanislavski morreu já faz tempo. Meyerhold também morreu. E muitos encenadores que eram orgulho da cena russa também já faleceram”. Para ele, a cena atual naquele país “tem muita coisa muito boa e muito lixo, e tudo isso está misturado. No mesmo lugar você pode assistir a um lixo num dia e, no outro, alguma coisa muito interessante. Geralmente em cidades civilizadas isso não acontece”, comparou, comentando que a ocilação se faz ver mesmo nos teatros mais prestigiados da capital russa.
“Não conheço muito o Brasil e estou muito vergonhado do meu desconhecimento. Mas talvez seja como observo nas ruas de São Paulo: você vê carros de luxo e grades para evitar a entrada de ladrões nos prédios, é muito parecido conosco. Por isso, senti uma ambiguidade quando assisti à apresentação de Elena, a muitas desses espetáculos não assisti porque temos muito pouco tempo e raramente assistimos peças uns dos outros, diretores. Muitos poucos assistiram aos meus esptaculos. Existimos num espaço muito separado. Algumas pessoas agora se uniram e defendem um diretor atacado pela igreja, mas, no geral, não sabemos ficar juntos, desaprendemos. E isso é uma conquista do governo atual”, ironiza.
Arlete Cavalieri comentou o emprego de supermarionetes em cena e a estilização do ser humano que percebemos também no trabalho do ator, referindo-se a Craig, Appia, Meyerhold e todo teatro russo de vanguarda. E, destacando a revisitação do passado literário e teatral, perguntou se o presente não existe mais na Rússia — e se resta uma nostalgia e melancólica desse grande passado. “Não acho que eu somente falo no passado nas minhas peças, embora olhando com seus olhos entendo que Dom Quixote e peças de Tchekhov… Não faço espetáculos sobre como acabar com manifestações e muitas outras coisas modernas que os jornalistas discutem. Simplesmente tenho outro estilo. Fizemos esse espetáculo com estudantes do segundo ano, muito jovens, e temos espectadores muito jovens que começaram a transmitir um para outro que esse lugar (o teatro) valia a pena visitar. Comecei a pensar que eles estão interessados nos meus sonhos de passado, no estilo, no diálogo”, comentou Krymov.