11/03/2015 | Welington Andrade

Da conveniência dos corpos impessoais e da perda da inocência das coisas primitivas
O escritor, pintor e mestre-escola austríaco Adalbert Stifter (1805-1868) foi, segundo Otto Maria Carpeaux, “o maior idilista do Biedermeier”, o movimento artístico alemão que vicejou no período conhecido como Restauração, entre a derrocada de Napoleão e as campanhas revolucionárias de 1830 e 1848, cujo mote implícito na própria significação da forma lexical germânica aponta para a ideia de um estilo de vida calmo e pitoresco calcado nos “bons velhos tempos”. Autor de contos, novelas e romances, dentre os quais se destacam Studien (1844-1850), Bunte Steine (1852), Der Nachsommer (1857) e Witiko (1865-1867), Stifter consagrou-se como um grande poeta descritivo da natureza, cultivando especial predileção pelos detalhes e minudências que era capaz de extrair da contemplação de montanhas, lagos, pradarias e florestas.
Sem nunca ter abdicado de sua missão de educador, o escritor (admirador de Goethe e admirado por Thomas Mann e Franz Kafka) acreditava, ainda de acordo com Carpeaux, que “as leis do Universo são sustentadas pelas coisas mínimas, e que a verdadeira grandeza reside na vida de todos os dias, no trabalho de todos os dias” – o que lhe conferiu a condição de um liberal pouco afeito às manifestações revolucionárias, já que estas interrompiam a quietude idílica do mundo e embaralhavam os níveis da hierarquia cósmica.
Ao batizar seu dispositivo artístico de Stifters Dinge (traduzido por algo como “coisas de Stifter”), o diretor e compositor alemão Heiner Goebbels não está somente prestando tributo a um honorável artista de quem talvez se saiba epígono, sobretudo em virtude da atração pelas paisagens naturais. Muito além disso, Goebbels converte o reputado nome próprio de Stifter em forma de pura nominação, fazendo ecoar entre os espectadores de língua portuguesa o mesmo movimento invertido flagrado por Murilo Mendes em seu belo poema adâmico: “O texto-coisa me espia/com o olho de outrem”.
A instalação performativa sem performers concebida por Goebbels em parceria com o cenógrafo Klaus Grünberg constitui de fato uma máquina, mas dela irradia, paradoxalmente, um senso de teatralidade disposto a veicular uma consciência artística das mais acuradas. O moto-perpétuo engendra dois regimes de semiose, fazendo natureza (água, névoa, galhos e troncos secos…) e cultura (música, literatura, pintura, discurso antropológico…) privarem da mesma expressividade estilística – para a qual o rigor da forma é fundamental.
Embora não seja autodeterminado, o engenho diante do qual a plateia se posiciona parece comprometido continuamente em gerar formas não somente belas como também tangidas por uma inteligência crítica cuja grande subversão é tornar conveniente a ausência de um corpo humano mediador. Sem ele, então, a sensibilidade e a consciência do espectador adentram sozinhas essa floresta repleta de corpos impessoais, que constantemente se transforma em matéria movente, desejosa de se relacionar com o público e se encontrar polifonicamente com ele.
A ausência de intérpretes aqui é altamente significativa. A coisa-máquina de Goebbels e Grünberg enuncia uma experiência repleta de marcas de subjetividade, sustentada por uma espécie de “alteridade sem pessoa”, condição presente tanto nos sujeitos discursivos implícitos no espetáculo quanto nos atores que nele não há. Se as caudalosas descrições de Adalbert Stifter primavam por dar ênfase ao circunstancial, a teatralidade deveras sintética de Heiner Goebbels destaca-se justamente por suprimir e eliminar a presença do intérprete, elemento que não parece soar mais ao projeto dessa teatralidade como verdadeiramente essencial.
Em relação ao catálogo de coisas primitivas desejosas de mergulharem no esteticismo quietista do Ottocento do Biedermeier, a engrenagem plástico-sonora do artista alemão soa como uma máquina anti-idílica por excelência, ao fazer os elementos da natureza (e também da cultura) se precipitarem em conceitos e princípios a serem admitidos a priori, em uma perspectiva de acento tão kantiano. A demanda por uma potente participação dos sujeitos que se postam frente a este industrioso autômato não deixa dúvida: diante deles há objetos inconexos, mas supremamente dizíveis (como quer Agamben), que estão ali, entretanto, para se deixar livremente pensar.
Se o espectador refrear um pouco o entusiasmo feérico que o acomete a cada fim de espetáculo, possivelmente hesitará antes de dar início às palmas finais. Afinal, que implicações políticas há no ato de se aplaudir uma encenação mecânica que modifica radicalmente a relação da arte com suas condições técnicas e humanas mais habituais?