11/03/2015 | Ruy Filho

Ao olhar para algo, logo se tem uma imagem, uma representação daquilo que se observa. Então, inicia-se o processo de reconhecimento e o estímulo se codifica como algo próprio, diretamente ou não, e então se traduz em forma de informação. Depende da história de cada um, suas cartografias cultural e emocional. O fato é que, ao olhar para diversos estímulos, as informações se organizam subjetivamente e logo se configuram na forma de uma improvável narrativa. Ao escutarmos algo, diferentemente, os estímulos são outros, a memória é acionada antes de qualquer formulação de informação. O som inverte o processo de reconhecimento e busca no próprio sujeito a codificação simbólica, aplicando-a sobre tudo mais.

Entretanto, no teatro, nem sempre as coisas seguem a lógica. É preciso provocar a disposição para inversões e negações, a fim de estabelecer novos procedimentos e desdobramentos estéticos.

Em Stifters Dinge, os pianos caminham, o som ilumina, as cortinam dançam, os pingos borbulham, a luz esconde, o espaço configura a margem entre realidade e poesia, a ausência do homem presentifica um eco de humanidade exatamente pela ausência de atores e também pelas vozes e falas circunstancialmente surgidas. Nos encontros e hiatos provocados entre os elementos, objetos, sons, em uma espécie de ambiente completo e onírico, a narrativa da monumental instalação mecânica subverte a previsibilidade da cena comum e invade o particular do espectador, seus sentidos, tornando o próprio assistir a manifestação do teatro.

Ao olhar para o ambiente de encenação, este que poderia ser o espaço do discurso recusa qualquer outro fim, limitando-se à afirmação da subjetividade e ao narrar como único movimento. Na estética da ausência, como denomina Heiner Goebbels sua relação com o esvaziamento proposital de determinados instrumentais comuns ao fazer teatral, perceber e imaginar estão radicalmente interligados, ainda que mais marcadamente distintos. A estrutura mecânica narra independente e o espetáculo se torna principalmente o vivenciar dos desdobramentos estéticos.

Goebbels consegue subverter a relação do espectador com sua própria natureza. É como se o espectador passasse a olhar o som e ouvir a imagem. Isso porque, aquilo que se ouve ocupa o lugar de imagem, como no som de máquina, chuva e o dedilhar sobre os pianos automatizados. Por sua vez, a imagem desprovida de metáforas evidentes acaba por conduzir o espectador a encontrar nele mesmo os valores de representação aos códigos narrativos, sem torná-los signos de representação. Tudo aparente na instalação é somente ele mesmo, e nada além.

Stifters Dinge e sua estrutura terminam por negar, em certo sentido, o próprio homem e sua realidade. Feito as árvores secas ao fundo. Conduz o espectador a uma experiência poética de solidão e finitude frente à natureza. No entanto, é na ausência do humano que se pode encontrar mais precisamente a representação da humanidade perdida. A independência da estrutura mecanizada e computadorizada dialoga com um homem que só se validará se compreendido igualmente acontecimento e desdobramento natural. O que retira a perspectiva de caber ao homem agir e determinar os gestos para a construção de sua própria história. Assim, o homem ausente, o ator que não está, é revelado pela teatralização do percurso narrativo da instalação. É esse homem quem justifica o fazer. É ele quem observa e ouve. É, antes de ser personagem, seu próprio público.

Se o poema pergunta ser possível criar espaços inexistentes, o espetáculo conduz a pergunta para sobre as possibilidades da criação poética. A falta de fé no homem, como descreve certo momento do espetáculo, leva-o a ser entendido como uma coisa a mais. Coisa, em seu sentido de objeto, de existência real sem identidade outra, cujos valores e sentimentos se perderam em distorções provocadas pelo excesso de realidade.

Enquanto a resposta não vem, Goebbels cria uma obra magistral e bela superando o efeito e a curiosidade inevitáveis, oferece um sistema de espelhamento de nosso isolamento e solidão, estabelecendo a narrativa no espectador. Isso talvez seja o mais urgente e fundamental no espetáculo: a capacidade de conduzir olhos e escutas ao mais profundo de cada um. Arrebatador, impecável, comovente e original. O diretor alemão mostra que, décadas depois, continua sendo um dos nomes mais inventivos e interessantes do contemporâneo.